The Sandman | Uma história atemporal e, aparentemente, incompreendida

    Não é novidade para ninguém que uma série sobre a obra ‘Sandman‘ de Neil Gaiman está em produção na Netflix. Sandman é considerada não apenas umas das maiores obras quando falamos em quadrinhos, mas também uma das mais grandiosas obras da literatura em geral. Gaiman, em toda sua genialidade, trás nas 75 edições que compõe a obra original um retrato lúdico, metafórico e ao mesmo tempo escancarado da humanidade, seja no seu melhor ou seu pior.

    Por muitos anos todos se perguntaram por que Sandman não havia ganhado uma adaptação pras telonas ou uma série. O própio Gaiman nos trouxe, recentemente, a resposta: ele não havia autorizado adaptações que poderiam depredar o legado de uma obra tão importante, uma adaptação que não faria jus a tudo que Sandman é.

    Mas agora o aguardado momento chegou, uma série está em produção na Netflix e sendo supervisionada pelo próprio Neil Gaiman. A primeira temporada irá adaptar os dois arcos iniciais das HQ’s, retratando ‘Prelúdios e Noturnos’ e ‘Casa de Bonecas’. No primeiro arco, acompanhamos o aprisionamento de Morpheus (Sonho) por Roderick Burgess (um infâme líder de culto que busca a vida eterna), seu tempo no cativeiro e como o mundo reagiu à ausência dos sonhos, sua eventual fuga e sua busca pelos seus itens de poder (um elmo, uma algibeira e um rubi), que são essenciais para que Sonho governe o seu reino, o Sonhar, e que foram roubados enquanto esse estava aprisionado. Já no segundo arco, resumindo de maneira breve, acompanhamos o retorno de Sonho ao seu reino, a descoberta dos danos causados neste na ausência de seu mestre e que quatro entidades fugiram do Sonhar: o pesadelo Coríntio, Verde do Violinista (a personificação de todo o verde dos sonhos) e BruteGlob (dois pesadelos), acompanhamos a busca de Sonho por essas entidades e pelo Vórtice (Rose Walker), que nada mais é que um ser humano que se torna o centro de todo o Sonhar, convergindo o sonho de todos e causando a destruição do Sonhar e dos sonhadores ao fim do processo e, por isso, o Vórtice precisa ser encontrado e morto.

    Elenco da série ‘The Sandman’.

    É de se imaginar que os fãs de Sandman estariam em êxtase com a chegada da série, certo? Errado, uma parte dos fãs está sim muito feliz e ansiosa, no entanto, uma outra parte está insatisfeita com os atores que estão sendo escalados para dar vida à Sandman, se irritando com a mudança de etnia de alguns personagens como a Morte, que será interpretada por Kirby Howell-Baptiste, uma atriz negra, e pela escalação de Mason Alexander Park, que se identifica como não-binário, para interpretar Desejo. Vale ressaltar que Morte e Desejo, assim como o Sonho, são entidades conhecidas como Perpétuos, que são a personificação de conceitos e sentimentos inerentes à toda humanidade, são abstrações que podem assumir qualquer forma, se adaptando a qualquer povo.

    É a revolta de alguns fãs por questões como mudanças de etnia, corpos, genêros e etc. entre os atores e os personagens por eles representados que nos leva a seguinte questão: Sandman foi realmente compreendido? A mensagem que Neil Gaiman tentou passar realmente chegou ao coração dos leitores? Toda a obra nos mostra que os Perpétuos, justamente por serem abstrações, podem se mostrar de diversas maneiras, o que ficou várias vezes claro nos quadrinhos, seja quando Morpheus aparece como um gato, em Um Sonho de Mil Gatos ou quando ele aparece como Kai’Ckul, um homem negro, que é a sua representação dentre uma tribo africana, em Histórias na Areia. Quando se trata dos personages de Sandman, o que menos importa são suas etnias ou genêros, mas sim o que está por trás, a mensagem que aquele personagem representa. Além do mais, algumas críticas são simplesmente infundadas, como reclamar de Desejo ser interpretado por uma pessoa não binária, se é assim que este Perpétuo é retratado nas HQ’s?

    A seguir, imagens de Sonho como Kai’Ckul e do personagem Desejo:

     

    Em pleno 2021, é preciso chegarmos a conclusão de que, quando se trata de adaptações de histórias em quadrinhos, o essencial não deve ser a fidelidade dos atores à aparência dos personagens e sim o que será entregue por este ator, se a essência dos personagens será respeitada, se tudo aquilo que faz de um personagem ele mesmo, e que, podemos dizer, está bem longe do seu físico, estará presente. É claro que agrada aos fãs verem personagens tão amados em live action de aparência semelhante ao que eles são nas histórias em quadrinhos, no entanto, este não pode ser o argumento utilizado como faixada para perpetuação e reprodução de ódio, em qualquer uma de suas carapuças, ainda mais quando se trata de uma série que está em produção, ou seja, ninguém pode dizer com propriedade se o trabalho está bom ou ruim, se toda a importância da obra foi mantida e resguardada.

    Tais reações, assim como a obra de Neil Gaiman, mostram a capacidade da humanidade de se ater a pequenez de detalhes e vontades egoístas, de julgar o mínimo se recusando a enxergar o macro, de querer enquadrar o mundo as própias vontades, recusando tudo aquilo que diverge. Quem leu Sandman e reproduz tais comportamentos, apenas leu e não sentiu.

    Chegou a hora de sentirmos mais, de vermos além, de deixar para trás conceitos atrasados de que mudar a etnia, genêro ou corpo irá destruir um personagem e de nos agarrarmos ao que realmente importa, a essência, de lembrarmos que tudo aquilo que reproduzimos, ecoa, portanto, que possamos reproduzir o bem. Como disse a mais nova dos Perpétuos, Delírio:

    Nossa existência deforma o universo. Isso é responsabilidade.

    Luara Evangelista
    Luara Evangelista
    Graduada em Direito, amante de Ciências Políticas e Sociais, Literatura e Cinema. Aficcionada por Cultura Pop e Dcnauta ferrenha. Busco enxergar conexões entre a cultura pop e debates sociológicos.

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