O emblema da Casa de El é um dos símbolos visualmente mais identificáveis dentro da cultura pop. Sendo utilizado por uma infinidade de personagens ao longo das décadas. E, dentre todos esses usuários, o maior destaque sempre foi Kara Zor-El. Que há tempos se desvencilhou da sombra de seu primo ao ponto de possuir uma voz singular dentro do universo. De tal maneira que não surpreende o anúncio de uma minissérie escrita por Tom King, um dos nomes mais relevantes no atual cenário dos quadrinhos.
King é conhecido por seus textos contemplativos, gostando de destrinchar a clássica imagem de heroísmo em suas histórias. E assim revelando as cicatrizes escondidas em meio aos sorrisos reconfortantes. Contudo, diferente de seus trabalhos mais notáveis, em Woman of Tomorrow o roteirista decide enaltecer o otimismo das figuras encapuzadas. Uma mudança talvez influenciada pelo lampejo de esperança que surge em uma pós era Trump, e exacerbado pelo pesar da pandemia. Algo que se encaixou como um belo par de botas numa personagem com um espírito de resiliência tão latente.
“Mais rápida que uma bala, mais potente que uma locomotiva e capaz de saltar prédios com um só pulo”.
A trama dá o seu ponto de partida a partir do desejo da jovem alienígena Ruthye por vingança pela morte desonrada de seu pai, nas mãos do nefasto Krem. Um desejo que a faz cruzar o caminho de Kara, que partiu para um planeta distante do sol vermelho para aproveitar seu vigésimo primeiro aniversário afogando seus traumas no álcool. De início, a heroína recusa a oferta, mas após um confronto quase mortal com o vilão, que põe Krypto – O Supercão entre a vida e a morte ela consegue roubar sua espaçonave. Supergirl e Ruthye partem em uma jornada em meio ao universo em busca do criminoso.
Há na trama uma construção de afeto por meio de uma dinâmica de mentoria e mentoreada, e é aí que a história encontra sua ancôra maior. Em determinado momento, se torna algo reativo em meio a um universo que não permite espaço para ingenuidade, forçando as protagonistas a encararem a feiura e brutalidade escondida não só em sua volta, mas também no interior de seus corações. Algo respondido por Kara através de atos de compaixão, que aos poucos vão impregnando no subconsciente da eloquênte Ruthye até a mesma ser capaz de enxergar por sí mesma um caminho que não permite a perpetuação de ciclos de violência.
Em muitos sentidos, a minissérie é uma carta de amor a trajetória da Supergirl. No desenrolar da trama, elementos clássicos da personagem surgem de forma surpreendente. Referenciando seus momentos mais emblemáticos, trazendo de volta amores passados e expondo temores do passado e evidenciando o quanto a mesma foi endurecida pela tragédia, mas que encontrou forças para continuar de pé e sempre achar esperança, mesmo nos momentos mais obscuros.
Em diversas entrevistas, King descreve Kara como uma sobrevivente do Holocausto. Alguém que viu seu mundo morrer três vezes, mas, que de alguma maneira permanece com os pés firmes ao chão. Entender o que a motiva desperta a curiosidade de Ruthye e do leitor. Todavia, essa resposta nunca é realmente respondida. Talvez sejam seus pais. Talvez a vontade latente de fazer o bem. Ou, talvez uma memória distante de uma árvore de folhas azuis e vermelhas dançando ao vento.
“Ninguém tem monopólio sobre o poder. Existiram balas mais rápidas, locomotivas mais potentes e prédios mais altos.”
No que diz respeito às artes, a HQ é um deleite visual com a quadrinista brasileira Bilquis Evely criando mundos diversos e repletos de detalhes e dimensões. Nenhum se iguala aos demais. Existindo personalidade e profundidade em cada detalhe de seu traço e como principal inspiração o surrealismo das obras do ilustrador francês Jean Giraud. As artes mostram uma versatilidade e criatividade formidável. Algo já antes presente em seus trabalhos, como em O Universo de Sandman: O Sonhar, pelo qual foi indicado ao prêmio Eisner em 2020, contudo, levado a um novo e surreal nível na minissérie.
Também é notável um cuidado especial com a forma em que é desenhado os olhares dos personagens, sendo eles o real reflexo de suas emoções. Desde o fascínio pela imensidão do espaço, ao esvaziamento completo de vida.
Tudo isso costurado primorosamente em conjunto com o colorista Matheus Lopes, que casa o tom esperançoso de King com o espetáculo imersivo dos traços de Bilquis através de uma estonteante aquarela de cores que preenchem as páginas de vida, como num passe de mágica.
A minissérie pode muito bem ser descrita como um faroeste espacial. Tendo suas referências firmadas em clássicos do western, em especial Bravura Indômita, e na riqueza presente em quadrinhos épicos de ficção científica dos anos 1970. Um amalgama que permite dar asas a criatividade de seus realizadores e que não restringem seus instintos em uma experimentação consciente de possibilidades, tornando cada edição uma experiência singular, onde narra uma história de amor, não romântica, de duas mulheres reconhecendo suas dores e encontrando na companhia uma da outra, uma forma de superá-las.
Quando as distopias deixam as páginas das histórias para se tornarem parte de nosso cotidiano, surge a necessidade da criação faróis de esperanças alertando que dias melhores virão e que a escuridão que nos envolve não é eterna, tornando essa obra uma resposta a apatia gerada depois de tantas feridas formadas nesses tempos de tamanha obscuridade e incerteza.
Algo que nos faça lembrar do porque ainda não nos deixamos ser consumidos. Com Supergirl: Woman of Tomorrow já podendo ser considerado o primeiro grande clássico desta nova década.
Nota: 5/5