O mundo não é um lugar perfeito e algumas pessoas não gostaram de Watchmen. O motivo não está relacionado diretamente a série, mas sim ao contexto atual. No Rotten Tomatoes, a série alcançou uma pontuação de 43% de aprovação por parte do público, enquanto possui 94% por parte dos críticos. Os números revelam uma imaturidade muito bem reconhecida nas redes sociais.
A discrepância das avaliações do público em geral, chega a ser irônico . Em Coringa vimos exatamente o oposto. Uma parte considerável da crítica deu notas baixas ao filme por motivos no mínimo curiosos. A) Glamourização da violência (inexistente), B) Possibilidade de um efeito negativo na sociedade (bola de cristal é requisito para ser crítico. Spoiler: a bola de cristal está quebrada.), C) A mensagem do filme ser considerada controversa. Observe que todas essas análises não são exatamente sobre o filme, mas sim, sobre uma possível interpretação pessoal a respeito da produção.
Agora, foi o público que avaliou Watchmen por questões meramente pessoais, questões essas que revelam o quanto a sociedade está doente e necessita de obras que possam incomodar. Alguns argumentos são sobre uma possível falta de respeito para com o material original. Muitos ficaram indignados com as mudanças, mas nenhuma mudança incomodou tanto como usar o Rorschach como símbolo e mentor da Sétima Kavalaria, um grupo supremacista branco inspirado na Klu Klux Klan.
Vamos analisar algumas opiniões de certos “fãs” na plataforma Rotten Tomatoes:
“Há uma razão pela qual Alan Moore não colocou seu nome neste projeto. O filme foi horrível. Então, por que se preocupar com outra tentativa esfarrapada? A história em quadrinhos era muito específica quando foi lançada em 1986… O que faz você pensar que pode ser adaptada hoje?”
“Parece que, infelizmente, essa série é politizada.”
“Decisões erradas de roteiro, e uma série politizada demais.”
Desde o início do projeto, estava claro que Alan Moore não se envolveria. O próprio Damon Lindelof (idealizador da série), mandou um “Foda-se Alan Moore” enquanto esteve na Comic Con San Diego. Ele disse no evento: “Sinto que o espírito do Alan Moore é um espírito punk rock e rebelde”, disse antes de supor que, se alguém tivesse dito ao escritor quando ele era apenas um adolescente para “não fazer isso ou aquilo porque o criador do Superman ou do Monstro do Pântano não querem, ele teria dito ‘Foda-se, vou fazer mesmo assim. Então estou canalizando o espírito de Alan Moore para dizer a ele ‘Foda-se, vou fazer mesmo assim.”
Mais tarde, infelizmente, Lindelof admitiu que tudo era um clickbait para vender a série. Mesmo sendo algo pensado para popularizar e consequentemente gerar barulho em torno da série. o “Foda-se Alan Moore” é exatamente o espírito necessário para a produção da série. Como Damon apontou, Moore não se guiava com a ideia de fazer aquilo que era esperado dele ou algo feito sob encomenda para agradar. Sabe o que também é assim? A série.
Lindelof deixou bastante claro que não tinha como objetivo recriar os quadrinhos na tela, algo que Snyder optou por fazer. Sua ideia era ir além dos quadrinhos e fazer uma atualização para os nossos tempos. Isso faz todo o sentido, quando o próprio quadrinho abordava alguns temas atuais na época do seu lançamento.
Watchmen não foi escrito para retratar o bem e o mal como conhecemos, tampouco para criar no público o popular sentimento de identificação com personagens. Watchmen foi criado como um discurso contra o conceito de super-herói, algo que o Sr. Moore detestava. Não é à toa que os heróis são tão imperfeitos, tão próximos do que conhecemos como vilões. Se você se identifica com algum dos heróis apresentado nos quadrinhos, isso diz muito sobre você mesmo e não, não dá para defender nenhum personagem.
Na obra original. Alan Moore não poupava espaço para política, contradizendo as críticas de uma parte do público sobre a série. Os quadrinhos são ambientados nos EUA na década de 1980. Aqui, existe uma realidade paralela onde Richard Nixon não renunciou ao cargo de presidente americano e os EUA acabou vencendo a Guerra do Vietnã com a extrema colaboração do Dr. Manhattan, escrito claramente para fazer um paralelo com Deus, inclusive a ideia de um suposto desprezo pela humanidade. E os “heróis”? Eles existem, mas não são exatamente como imaginaríamos. Na verdade, se comportam como vigilantes usando extrema violência como resposta. A sociedade acaba se revoltando contra os vigilantes e Nixon emite um decreto, tornando o vigilantismo algo ilegal. Mas, um entre todos, se recusa a tirar a máscara, ele, Rorschach.
A escolha do Rorschach ser o condutor da série é uma amostra do quanto Moore queria retratar uma sociedade doente e o quanto heróis podem ser exatamente o oposto do que pretendem. Rorschach é um detetive mascarado que carrega seus traumas literalmente na sua máscara e escolhe tratá-los, com a violência contra os caras maus. Na sua caminhada, Rorschach escreve um diário. No seu diário, fica claro como Rorschach tem ódio por alguns grupos e não poupa palavras para descrever. Veja alguns exemplos:
“A imundice de todo sexo e matanças vai espumar até a cintura e as putas e os políticos vão olhar para cima gritando “salve-nos”… e eu vou olhar para baixo e dizer “não”. Eles tiveram escolha, todos. Podiam ter seguido os passos de homens honrados como meu pai ou o presidente Truman. Homens decentes, que acreditavam no suor do trabalho honesto. Mas seguiram os excrementos de devassos e comunistas sem perceber que a trilha levava a um precipício até ser tarde demais. E não me digam que não tiveram escolha. Agora o mundo todo está na beira do abismo contemplando o inferno e os liberais, intelectuais e sedutores de fala macia… de repente não sabem mais o que dizer.”
“Dormi o dia todo. Acordei às 16:37, com a senhoria reclamando do cheiro. Ela tem cinco filhos de cinco pais diferentes. Deve enganar a previdência social. Logo vai anoitecer. Lá embaixo a cidade grita como um matadouro cheio de crianças retardadas.”
“Encontrar Veidt me deixou um gosto ruim na boca. Ele é mimado e decadente. Traiu até mesmo suas próprias hipocrisias liberais. Talvez homossexual? […] A primeira Espectral é uma puta velha e inchada morrendo num asilo na Califórnia.”
“Rua 42: seios nus se esparramam de todos os outdoors, de todos os cartazes, sujando a calçada. Me ofereceram amor sueco e amor francês… mas não amor americano. Amor americano; como Coca em garrafas de vidro verde…eles não fazem mais.”
Fica claro como Rorschach nutria um ódio direcionado principalmente as minorias sociais. Suas opiniões registradas, revelam alguém que busca por justiça, ao mesmo tempo que carrega em si um sentimento profundo de desgosto a pessoas que julgam serem inferiores.
Sempre questionam as atitudes dos outros, sem uma possível busca de compreensão. O ódio se estabelece também a grupos políticos que ele não concorda, algo muito natural hoje e evidencia o motivo da suposição de Watchmen ser político demais. As opiniões de Rorschach se misturam com a realidade atual, onde, muitos, principalmente homens, defendem conceitos similares em grupos da internet. Ódio profundo a tudo aquilo que não é visto como natural e assim como Rorschach, compartilham um patriotismo exacerbado, fazendo parecer que tudo aquilo que é americano, é melhor.
Um detalhe interessante, Snyder preferiu mudar as falas e naturalmente, suavizá-las para o cinema. O personagem Rorschach é excelente, um dos mais bem construídos nos quadrinhos, mas desde o início, fica claro que ele não é feito para ser adorado. A adoração do mesmo, por grupos supremacistas brancos como a Sétima Kavalaria na série, é uma leitura exata de como esses grupos no mundo real, tentam justificar suas ideias através de símbolos tão controversos.
A realidade, naturalmente é mais assustadora. Por isso que a série é exatamente uma distopia atual. A falta de capacidade para um debate político também é um causador de todo esse incômodo da parte de alguns. Se estamos num momento onde não sabemos respeitar opiniões diversas e partimos para agressões verbais (quando não são físicas), é natural que muitos se sintam incomodados.
É preciso maturidade por parte do público para ter suas ideias confrontadas e para que possam ir além de discussões bobas, e assim quem sabe, possa surgir uma provável mudança. Na prática, sabemos que que essa maturidade está cada vez mais distante e a grosseria e a estupidez presente no debate político é como o sonho político em Watchmen, já se realizou.
P.S.: Foda-se Alan Moore.