Zack Snyder | Uma história em cinco atos: ascensão, queda e ressurgimento na DC Filmes [Parte 2 de 2]

    Esse texto trata-se de uma continuação! Caso não tenha lido a Parte 1, clique aqui. 

    Terceiro Ato: “Liga da Justiça”: A queda.

    Boa parte dos atores que já tiveram a oportunidade de trabalhar com Zack Snyder costumam elogiar a postura profissional do diretor, o carinho com o elenco e sua devoção aos pequenos detalhes. Isso não muda o fato de que Zack sofreu pressões enormes durante as filmagens de Liga da Justiça. Parte dessa pressão vinha da “crítica”, que já não parecia mais aberta àquilo que o diretor pretendia construir para o universo compartilhado da DC; mas a maior parte da pressão vinha do próprio estúdio que, muito influenciado pela dita “crítica”, mas também pelo desempenho de bilheteria aquém do esperado naquela altura, já não parecia disposto a permanecer com o diretor por muito tempo.

    Zack Snyder no set de Liga da Justiça.

    A Warner se mostrava cada vez mais disposta a interferir na condução criativa das obras que compunham seu universo compartilhado. O estúdio parecia muito convicto de que não deveria mais apostar em um estilo próprio, que deveria ser “mais Marvel”, investindo em filmes com temáticas mais leves e tom menos sombrio, visando atingir o mesmo público da concorrente.

    Esquadrão Suicida, filme dirigido por David Ayer e que chegou aos cinemas em agosto de 2016, poucos meses após Batman vs. Superman e todas as suas repercussões, foi o primeiro filme a sofrer com a interferência mais pesada do estúdio. Isso ficou muito perceptível na própria campanha de divulgação do longa, quando comparamos o primeiro trailer, com o último. O tom sombrio dá lugar a uma música animada, a seriedade abre espaço para piadinhas, a paleta de cores fica mais vívida e transmite sensações completamente distintas ao espectador. A mudança repentina produziu um filme de tom confuso, um fracasso de crítica, mas com bilheteria aceitável frente ao orçamento. O suficiente para fortalecer as convicções da Warner de que esse era o rumo certo a tomar.

    Em junho de 2016 circulavam notícias na mídia que davam a entender que a permanência de Zack Snyder à frente do universo compartilhado da DC nos cinemas estava realmente com os dias contados. Liga da Justiça, que inicialmente seria dividido em Parte I e Parte II, teve seu nome confirmado como simplesmente “Liga da Justiça”, indicativo de que a Warner pretendia reassumir o controle das produções do Universo DC e incliná-lo para novos rumos.

    Quase um ano depois, em maio de 2017, veio a mais chocante e surpreendente das notícias divulgadas até então: em uma entrevista ao The Hollywood Reporter, Zack Snyder anunciou que deixaria o comando de Liga da Justiça devido ao trágico falecimento de sua filha, Autumn Snyder, em março, e Joss Whedon (diretor dos dois primeiros “Os Vingadores”) assumiria o posto. O tom da entrevista e algumas aspas do chefão da Warner, Toby Emmerich, davam a entender que o filme estava pronto, cabendo a Whedon apenas algumas poucas filmagens adicionais e a entrega do corte final ao estúdio, tendo sido o diretor inclusive “escolhido” por Snyder para levar a cabo essa missão.

    Porém, seis meses depois, com o lançamento do filme nos cinemas, ficou bastante perceptível que a interferência de Joss Whedon no filme, a mando do estúdio, foi bem maior do que o previamente anunciado. Whedon realizou a refilmagem de diversas tomadas, adicionou cenas e diálogos completamente novos, alterou significativamente a pós-produção do filme com o intuito de deixá-lo mais “leve” e removeu detalhes importantes da trama, como o uniforme preto do Superman e a história de fundo do Cyborg. O filme foi praticamente refeito há seis meses da estreia, que não foi postergada.

    Todos esses acontecimentos se deram antes das gravíssimas acusações inicialmente reportadas por Ray Fisher (Victor Stone/Cyborg), e posteriormente corroboradas por outros membros do elenco, que iam de racismo a assédio moral, virem à tona. Até hoje, a Warner deve esclarecimentos sobre o que de fato ocorreu na produção de Liga da Justiça e a punição dos responsáveis deve ser sempre demandada.

    Henry Cavill foi convocado por Joss Whedon para gravar novas cenas. O ator, que estava filmando Missão Impossível: Efeito Fallout, teve seu bigode removido digitalmente sem muito sucesso. A Liga da Justiça que chegou aos cinemas em novembro de 2017, apelidado pelos fãs com o trocadilho infame de Josstice League, é uma aberração que jamais deveria ter visto a luz do dia. O filme alterna em tom, tem um vilão inexpressivo e de motivações irrelevantes e não fornece tempo de tela suficiente para fazer justiça a seus personagens. O fracasso de crítica e bilheteria foi gigantesco, tendo arrecadado cerca de US$658 milhões, frente a um orçamento de US$300 milhões. O primeiro contato do público com a Liga da Justiça nos cinemas é um evento para ser esquecido.

    Zack Snyder sabia que para continuar no comando do filme e manter sua visão sobre a narrativa até o final, ele teria, como sempre, que entrar em uma queda de braço com o estúdio. Comprar uma briga desse tamanho requer muito comprometimento e energia. Era uma briga que Zack não estava mais disposto a comprar. Não naquele momento, por maior que fosse sua devoção aos personagens e ao filme que estava produzindo.

    Epílogo: “Liga da Justiça de Zack Snyder”: O poder do fã e os interesses corporativos.

    Não demorou muito para que os fãs percebessem que a versão de Liga da Justiça que chegou aos cinemas possuía muito pouco (ou quase nada?) da visão original e mesmo das filmagens realizadas por Zack Snyder.

    Desde o lançamento de ‘O Homem de Aço’, mas especialmente após ‘Batman vs. Superman’ e, posteriormente, com a trágica saída de Zack Snyder do comando de ‘Liga da Justiça’, uma comunidade imensa e muito engajada de fãs da DC se reuniu em torno do diretor e em defesa da sua visão, mais adulta e reflexiva, dos filmes de super-heróis.

    A partir desse grupo orgânico de pessoas começou a surgir um movimento na internet, inicialmente com o impulsionamento da hashtag #ReleaseTheSnyderCut (#LiberemOCortedoSnyder, em tradução livre), com o intuito de chamar a atenção da Warner Bros. para o desejo dos fãs em verem a versão do diretor original do filme.

    O movimento que no princípio foi tomado como piada e um burburinho inócuo, passou a ganhar tração com o passar do tempo, à medida que os fãs não abdicaram da ideia. Isso fez com que, em 2019, dois anos após o lançamento do filme nos cinemas, até mesmo estrelas do filme, como Gal Gadot (Diana Prince/Mulher-Maravilha) e Ben Affleck (Bruce Wayne/Batman) entrassem na campanha #ReleaseTheSnyderCut.

    As ações não pararam por aí. Os fãs que movimentavam a hashtag e mantinham a chama de esperança acesa de um dia terem acesso à versão original do filme, utilizando em diversas oportunidades a ferramenta de crowdfunding, as populares vaquinhas da internet, para patrocinarem ações por vezes ousadas, como sobrevoar um avião com uma faixa que continha os dizeres “WB #LanceOSnyderCut de Liga da Justiça” sobre a Comic-Con de San Diego (a mais importante do mundo), ou pagarem um anúncio na Times Square de Nova Iorque solicitando o lançamento do filme. Os fãs também fizeram pesadas campanhas de arrecadações de fundos para a AFSP, a Fundação Americana de Prevenção ao Suicídio, na tradução da sigla em inglês, como forma de prestar solidariedade ao diretor após o falecimento de sua filha durante as filmagens do longa.

    Avião sobrevoa a San Diego Comic Con com uma faixa: “WB #LiberemOCortedoSnyder de Liga da Justiça”.

    Durante muito tempo o SnyderCut permaneceu como uma espécie de “lenda” na internet. Enquanto vários acreditavam verdadeiramente que o filme permanecia no limbo em alguma gaveta da Warner, outros tantos viam com ceticismo a possibilidade de um dia ele realmente ser lançado. Entretanto, o próprio diretor Zack Snyder, através de seu perfil na rede social Vero, contribuía para a manutenção do movimento ao liberar a conta-gotas imagens exclusivas do set de filmagens de Liga da Justiça. Em certo momento, o ator Jason Momoa (Arthur Curry/Aquaman) chegou a afirmar que tinha tido o privilégio de assistir a versão do diretor e que era “totalmente diferente” do que havíamos recebido no cinema.

    Anúncio do movimento #ReleaseTheSnyderCut na Times Square, um dos locais mais movimentados de Nova Iorque.

    Enquanto as dúvidas sobre a existência de uma versão completamente diferente do filme ficavam cada vez menores,  foi apenas em maio de 2020, em uma watchparty de ‘O Homem de Aço’ que contou com as ilustres presenças de Henry Cavill e Zack Snyder, que o lançamento do SnyderCut foi finalmente confirmado pelo diretor, planejado para chegar aos fãs através da HBO Max, novo serviço de streaming que a WarnerMedia estava em vias de disponibilizar ao público.

    Embora o movimento e insistência dos fãs tenham sido essenciais para tornar o SnyderCut uma realidade, é importante entender o contexto que permitiu que isso acontecesse. O lançamento da HBO Max não seria tarefa fácil para a Warner, que mesmo sendo uma gigante de conteúdo precisaria se posicionar em um mercado que já contava com outros serviços de streaming bem estabelecidos, em especial Netflix, Amazon Prime e Disney+. Dessa forma, a Warner aproveitou com maestria a paixão dos fãs, apelando para movimentos organizados, como o #ReleaseTheSnyderCut, ou a nostalgia, com o anúncio do tão aguardado Friends Reunion, trazendo de volta o elenco original da aclamada série dezessete anos após a veiculação de seu episódio final. Tacadas como essa fizeram a HBO Max chamar a atenção do público e a Warner conseguiu o que precisava.

    De toda forma, após anos de espera e de campanhas incessantes pelo lançamento da versão de Zack Snyder de Liga da Justiça, o diretor garantiu um orçamento de US$70 milhões para finalizar os efeitos visuais e realizar filmagens e gravações de diálogos necessários para entregar seu corte do filme, disponibilizado em uma versão de 4h:02min que chegou ao serviço de streaming em 18 de março de 2021. Evidentemente o fornecimento desse orçamento generoso para a finalização do longa não veio sem uma forte barganha do diretor, que chegou a relatar que a oferta inicial da Warner era lançar o SnyderCut em estado bruto, sem trilha sonora, efeitos visuais e sem tratamento de cor. “Oferta” felizmente rechaçada pelo diretor.

    Dispensa dizer que o SnyderCut de Liga da Justiça é um filme completamente diferente da versão que vimos no cinema, evidentemente muito melhor em todos os aspectos, embora o núcleo da história seja o mesmo: Lobo da Estepe como vilão, Caixas Maternas centrais à trama, jornada para trazer o Superman de volta à vida. Entretanto, o SnyderCut de Liga da Justiça é um filme sem pressa, que dá tempo aos seus personagens, que trata a história de cada um deles com respeito e permite que todos sejam importantes à sua própria maneira. Sugiro àqueles que buscam uma análise mais aprofundada sobre a versão de Zack Snyder de Liga da Justiça a leitura da crítica de Ricardo Santos, escrita para o Terraverso. Ele resume o significado desse filme melhor do que eu jamais seria capaz de fazer: “‘Liga da Justiça Snyder Cut’ existe por nós, por Autumn, por Ray Fisher, por todos e para aqueles que acreditam que a Era dos Heróis voltou”.

    Considerações Finais.

    Como tentei demonstrar nestes dois textos, a história de Zack Snyder dentro da Warner, em especial na DC Filmes, está longe de ser trivial, cheia de altos e baixos, percalços, pressão, sucessos e, para alguns, fracassos. Nada disso muda o fato de que o controverso diretor deixou sua marca registrada na história destes personagens e muito do que ele construiu permanecerá como legado, mesmo que o estúdio tente fazer de tudo para que ele seja esquecido.

    Zack Snyder teve a ideia de escalar Ben Affleck como Batman, uma decisão intensamente criticada à época, mas que rendeu uma versão mais velha e descrente do Morcego de Gotham, muito inspirada na visão clássica de Frank Miller e que acabou conquistando uma legião de fãs. Foi também ele quem escalou a quase desconhecida Gal Gadot para o papel de Mulher-Maravilha, e Jason Momoa para o papel de Aquaman, ambos também muito criticados precocemente. Hoje, Gal Gadot se transformou na personificação da Mulher-Maravilha, tornando a personagem ainda mais popular e fonte de inspiração para uma legião de meninas no mundo todo. Jason Momoa, que nasceu no Havaí e tem profunda intimidade com o mar desde criança, além de seu enorme carisma, se mostrou uma escolha profundamente acertada para o papel de Aquaman. Tanto a Mulher-Maravilha, quanto o Aquaman escolhidos por Zack Snyder já renderam alguns bilhões para os cofres da Warner em seus filmes solo.

    Recentemente a AT&T, atual detentora da WarnerMedia, anunciou ter aceito uma proposta de US$43 bilhões para uma fusão entre a WarnerMedia e a Discovery. Na prática isso tira a Warner Bros. do guarda-chuva de uma empresa de telecomunicações e a coloca de volta sob o comando de uma empresa de entretenimento. O que em um primeiro momento pareça algo desimportante, apenas negócios, pode na realidade ter implicações interessantes em como os assuntos são tratados internamente na empresa.

    WarnerMedia e Discovery formarão um novo conglomerado voltado para o entretenimento.

    À luz dessa notícia, o colunista da Forbes, Mark Hughes, defendeu em um artigo que a Warner-Discovery deveria investir na continuação da visão de Zack Snyder para o universo compartilhado de super-heróis da DC, o que vem sendo chamado de SnyderVerso. Hughes argumenta que isso seria uma “decisão mercadológica e artisticamente correta” e que isso “demonstraria a ideia da habilidade dos conteúdos da DC em construir diferentes cantos da sua abordagem do ‘Multiverso’ e continuar produzindo conteúdo premium exclusivo que atraia a base de fãs estabelecida, bem como novos assinantes”. O colunista destaca ainda que o lançamento poderia ser feito na forma de filme ou minissérie para a HBO Max, de forma híbrida com o cinema, ou mesmo na forma de animação.

    Mark Hughes possui ampla experiência e conhecimento sobre como funciona o mercado do entretenimento e acredito que o fato de ter escrito essa coluna indica que ele realmente vislumbra a possibilidade de uma nova mudança de rumos para os lados da Warner Bros. De qualquer forma, devo ressaltar que permaneço cético diante de tal possibilidade, uma vez que o restabelecimento do SnyderVerso envolve muitas questões que não são apenas mercadológicas, como ele próprio destaca em sua coluna.

    Entre elas está o casal Zack e Deborah Snyder. Estariam eles dispostos a novamente trabalhar com a Warner após todos os acontecimentos que ganharam o conhecimento do público? Dada a paixão de Zack pelos personagens, dentro de certas condições, acredito que essa situação poderia ser contornada.

    De outro lado, estariam os alto-executivos da Warner dispostos a deixarem de lado seus egos e voltarem atrás em sua decisão de afastar o diretor dos planos futuros de seu universo compartilhado da DC? Esse é um aspecto muito mais delicado de se resolver, uma vez que Zack Snyder não poupou o estúdio de ácidas e duras críticas antes, e especialmente após, o lançamento de sua versão de Liga da Justiça.

    Por fim, estariam as estrelas do filme dispostas a se comprometerem a contratos de longo prazo para talvez interpretarem diferentes versões dos mesmos personagens em linhas do tempo alternativas? Enquanto Gal Gadot e Jason Momoa parecem bastante satisfeitos em darem vida à Mulher-Maravilha e ao Aquaman pelos anos que virão, o veterano Ben Affleck não demonstra possuir a mesma intenção e deve interpretar o Batman pela última vez no vindouro The Flash, que chegará aos cinemas em novembro de 2022. Filme esse, aliás, que tudo indica deverá dar um reset no universo compartilhado da DC nos cinemas.

    Investir na finalização de um filme praticamente pronto, que havia se tornado uma lenda da internet e que organicamente movimentava uma base gigantesca de fãs obcecados, ao mesmo tempo que precisava gerar buzz para seu novo serviço de streaming, era uma decisão que fazia total sentido. Porém, se comprometer em longo prazo com uma visão de universo que o estúdio amplamente demonstrou não acreditar mais, me parece um passo que a Warner Bros. não está disposta a dar.

    Se a campanha #RestoreTheSnyderVerse terá o mesmo sucesso e perenidade da #ReleaseTheSnyderCut só o tempo dirá. Estive errado uma vez e, não se enganem, adoraria estar errado novamente.

    Álisson Couto
    Álisson Couto
    Engenheiro civil, professor e fissurado pelo universo de super-heróis e da cultura pop. Fã incondicional do Batman e defensor ferrenho do Batfleck. Palpiteiro profissional.

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