Na continuação de nossa análise sobre as páginas e quadros de A Piada Mortal, continuaremos do exato ponto onde paramos, na página 70 do roteiro de Moore, que será a página 25 na sua edição de luxo da Graphic Novel. Caso você não tenha visto ainda a primeira parte, você a encontra aqui. Você também pode ler mais sobre a criação de A Piada Mortal aqui, em outra parte do nosso especial de 30 anos.
Temos início a mais um flashback, onde o homem jovem recebe a notícia da morte de sua esposa e de seu filho. Esse é o flashback menos colorido por Bolland, que reforça o luto e a sensação de enclausuramento do personagem e vai ressaltar as cores da sequência do passeio de Gordon, que virá a seguir, e as do último flashback. O último quadro se encerra com um eco da posição do homem jovem e de Gordon, que também apresentam estes homens cercados por figuras de ar grotesco, agentes da loucura.
Acompanhamos a viagem de Gordon no trem-fantasma, enquanto o Coringa faz sua performance musical e mostra as fotos de Bárbara para o comissário. Aqui, mais uma vez, retomamos o tema da relação do Coringa com a imagem. Apesar de todo o mal e tortura que o Coringa afligiu a Gordon, era necessário que a imagem fosse usada como a ponte que cria a ruptura na realidade e induz a loucura. Se, ao final de suas lembranças, vemos o Coringa ocultando sua própria face, tomado pelo medo e pelo sofrimento, aqui ele se revela em grandes painéis. A figura central da página 25 apresentava uma violência gráfica muito maior no roteiro de Moore, que Bolland amenizou em sua primeira versão, que mostrava também um nu frontal de Bárbara. Esta também foi amenizada ao ser levada para a graphic novel, focando na expressão de dor de Bárbara e em detalhes de suas pernas. Os caminhos prováveis sobre o acontecido com Bárbara deixarei-os em aberto para livre interpretação, mesmo que o roteiro de Moore e uma declaração dada pelo autor já tenham dado a resposta. A página seguinte nos apresenta o final do tour de Gordon, ao mesmo tempo que mostra a busca de Batman pelo Coringa. Isso não só explica rapidamente onde o herói esteve como também faz uma pequena ode ao lado detetive do Homem-Morcego. Esses quadros também mostram que Batman falhou em salvar o comissário Gordon a tempo. Isso vai criar um atrito maior entre o Batman e o Coringa e cria uma tensão maior para a história, reforçada pelo aumento do som do trem-fantasma passando pelas portas. “Bdump“. Se acompanhamos o som ao ler a história, veremos que ela formará o som de batidas de coração.
Já vimos que algumas falas dos personagens, quando direcionadas a outros, falam mais sobre o personagem em questão do que quem as está ouvindo. A partir deste ponto isto ficará mais presente até o fim da hq. O Coringa recebe um catatônico Gordon e Huguinho, Zezinho e Luisinho na saída do trem-fantasma. Enquanto olha para uma poça, vamos para o último flashback da história, com o homem jovem olhando seu reflexo na água. Essa água que liga o futuro com o passado também liga passado com o futuro, pois será desta água tóxica que o homem jovem, que agora vê sua imagem pela última vez, sairá já transformado em Coringa. Vemos aqui que todos as pequenas colorizações de Bolland eclodiram na apresentação do Capuz Vermelho. A visão do homem jovem, ao colocar o capacete, se torna dupla. Os caminhos que ele toma, agora, são moralmente ambíguos e confusos. É assim que ele também verá Batman antes de pular no ácido da Ace Chemicals, uma figura duvidosa e dúbia. Batman, que aqui aparece no começo de sua carreira de vigilante, interrompe a ação dos seguranças para cuidar das coisas a seu “modo”. O “modo” do Batman é justamente um dos últimos elementos necessários para a criação do Coringa. Após sair do rio poluído, em meio a dor, o homem jovem tira o capacete do Capuz Vermelho e enxerga seu novo rosto em uma poça. É, no confronto com a imagem, que o homem jovem deixa de existir. Nasce o Coringa.
Do mesmo HAHAHAHA visto no último painel do passado, voltamos ao presente com as figuras do circo rindo de Gordon, que está preso em uma jaula. Enquanto o Coringa fala da sua visão sobre o homem comum, faróis se aproximam. Batman finalmente chegou, como a luz que espanta o mal, com poder e imponência. Não é a toa que o maior quadro da história é reservado para o Homem-Morcego e para o Batmóvel. Apesar do tom heróico, é como se dois demônios estivessem se encarando. É a primeira vez na graphic novel que o Batman se encontra com o verdadeiro Coringa. “Olá, eu vim conversar”. As legendas retomam as falas de Batman para o falso Coringa das primeiras páginas, no Arkham. Porém, diferente de antes, Batman não precisa repeti-las. Os rostos não estão mais encobertos por sombras. Ambos se conhecem, ambos são íntimos. Não há nada que precisem dizer um ao outro que já não seja do conhecimento de ambos. Normalmente, quando se fala na Piada Mortal, sempre são citados alguns momentos icônicos da graphic novel, mas dificilmente estes quadros das páginas 34, 35 e 36 são lembrados. Eles são importantíssimos pra reforçar a relação do Batman e do Coringa e o aspecto cíclico da hq. Todas as ações do Coringa são um caminho para que a história chegue exatamente neste ponto: o embate entre as duas forças que representam.
O Coringa foge para a Casa de Diversões e Batman ajuda Gordon a sair da jaula onde está preso. Em menos de uma página Moore/Bolland nos mostram a força e a sanidade de Gordon, que apela para que Batman vá atrás do Coringa e o traga “pela lei”. Batman atravessa a porta, que já reconhecemos como um símbolo da loucura, para encontrar um ambiente de profanação e armadilhas, onde as imagens são traiçoeiras e confusas. O Coringa nos fala sobre sua teoria do dia ruim, e traça paralelos entre seus destinos. Os espelhos refletem o Príncipe Palhaço de várias formas, as formas e passados que o Coringa diz constantemente se lembrar. Enquanto conta sua piada, a piada do título, a piada que é a própria vida em si, Batman quebra o espelho e aparece atrás do Coringa. É a quebra das imagens distorcidas que o Coringa constrói, assim como a da barreira que os distanciava. É a primeira vez que vemos uma linha, um muro metafórico entre os dois personagens, desaparecendo. Esse limite quebrado por Batman também nos apresenta uma sequência de quadros onde o rosto dos personagens aparecem ao mesmo tempo, durante uma feroz luta. Até esse momento, e excluindo os quadros com o falso Coringa, os rostos dos personagens haviam dividido de forma clara o mesmo quadro apenas uma vez (o primeiro da página 36). O Batman, então, retruca os comentários do Coringa a respeito de Gordon.
Batman: “por acaso, eu falei com o comissário Gordon antes de entrar aqui. Ele está muito bem.”
Batman: “apesar de suas brincadeiras doentias ele esta tão equilibrado como sempre foi.”
Batman: “talvez pessoas comuns não quebrem á toa.”
Batman: “talvez as pessoas não precisem ficar caídas no chão só porque levaram um tombo.”
Batman: “talvez a fraqueza seja só sua.”
Aqui, também falando a si mesmo, Batman vê em Gordon a sanidade que faltou ao garoto Bruce Wayne. Ambos, Coringa e Batman, sabem que não são “pessoas comuns”, como o próprio Batman diz. Ambos são seres danificados e quebrados, por isso Batman se exclui da definição. É por isso que Coringa escolhe Gordon para testar sua teoria, pois é o homem justo e são de Gotham. Que força é essa de Gordon, a força do homem comum, que faltou aos humanos mais formidáveis da Terra?
O Coringa é jogado para fora da Casa de Diversões, fora do ambiente de loucura, e é trazido para uma noite escura e marginalizada. É o ambiente do real. Foi numa noite parecida com essa que o homem jovem perdeu sua vida, que os pais de Bruce Wayne foram assassinados e que o Comissário Gordon foi torturado. Em uma sequência rápida, o Coringa saca a mesma arma usada para aleijar Bárbara Gordon para atirar em Batman. Há uma repetição de quadros que relembra os segundos que antecederam a tragédia de Bárbara. “Click, click, click“. A arma, porém, está vazia.
Diferente do que aconteceria normalmente, Batman e Coringa começam a conversar sobre as escolhas e sobre os caminhos que podem percorrer. Durante toda a graphic novel, Moore/Booland nos deram pequenos momentos onde o Coringa perdia seu semblante psicótico e seu característico sorriso. Agora, por duas páginas e meia, a dupla nos entrega um momento de pura humanidade e sentimento do vilão, onde por um breve momento a vontade de voltar a ser o homem jovem possa ter surgido. Porém, o Coringa sabe que não há saída. É tarde demais para que ele possa voltar a ser uma pessoa normal, assim como é tarde demais para que o Batman deixe de vestir seu uniforme e caçar bandidos de noite. Ambos estão presos a esse ciclo onde o caos e a ordem se colidem, deixando feridos pelo caminho, e que se iniciará na noite seguinte. Um ciclo interminável e irreversível. Antes mesmo que a piada do Coringa acabe, Batman já entende o que ela significa. No roteiro de A Piada Mortal Moore frisa que Batman está triste pelo Coringa. O palhaço, então, entrega o punchline. Com o rosto molhado de chuva, lágrimas ou ambos, o Coringa começa a rir de forma desenfreada, e é seguido por Batman. O som das risadas se mistura ao som das viaturas do GCPD que estão chegando. Batman apoia suas mãos no Coringa. As luzes dos carros fazem linhas de luz nas poças, entre os dois inimigos. A luz desaparece em seguida, quebrando a linha que existe entre eles, permanecendo apenas a imagem dos pingos na poça. O último quadro não possui legenda de final, nem nada que indique o fim da história. A história apenas apresenta um eco com o começo, como se pudesse ser lida em looping.
Independente do final que você pense para a obra (que iremos discutir na próxima parte), o importante é pensar nesse ciclo criado por Moore/Bolland e na busca por retratar o mito destes dois personagens, assim como o símbolo que constroem quando estão sozinhos e em relação. Em poucas páginas, a dupla conseguiu aprofundar ainda mais na psiquê destas figuras e revelou facetas do Coringa que, até então, nunca haviam sido exploradas com convicção. Independente se Batman matou ou não o Coringa, ou o que signifique de fato a piada do vilão, o que importa é que por um breve momento Bruce Wayne e o Homem Jovem compartilharam um raro momento de cumplicidade e riram, juntos, na chuva, enquanto se apoiavam um no outro. E se esse não for um dos momentos mais poderosos das histórias em quadrinhos e não fizer você abrir pelo menos um sorriso de canto de boca é porque, muito provavelmente, você só está em um dia ruim.