Batman: O Messias | Após 30 anos, minissérie continua atual – e politicamente relevante

    Ao longo dos anos alguns poucos personagens puderam ostentar o mérito de vencer o Batman. E outros pouquíssimos podem dizer, com orgulho, que quebraram o morcego. E falando exatamente dessa forma – quebrar o morcego – o primeiro nome que vem a mente é, claro, Bane. Se Bane quebrou o Batman fisicamente, o Coringa quebrou o Batman emocionalmente e racionalmente em diversas ocasiões. Thomas Elliot, o Silêncio, quebrou a confiança do Homem-Morcego. A tragédia natural que atingiu Gotham na saga Terremoto quebrou sua esperança. Mais recentemente, na fase do Batman escrita por Tom King, Bruce quebrou de um jeito que nunca havíamos imaginado. Mas, antes de tudo isso, no longínquo ano de 1988, os leitores da DC conheceram um inimigo que, de fato, destruiu o Batman. Quebrou o Morcego e tudo que ele representa, de uma forma que ninguém havia visto. Mentalmente, fisicamente, emocionalmente, politicamente.

    Batman: O Messias é uma das melhores e mais profundas histórias do Cruzado Encapuzado. Lançada em meio a tantas histórias notórias do personagem, como The Dark Knight Returns, Ano Um, Piada Mortal e Morte em Família, a minissérie em 4 edições acabou por cair no injusto desconhecimento dos leitores. A falta de atenção da DC Comics e das distribuidoras também acabou por colaborar com esta injustiça, que parecem optar por lançar todos os anos novas “Edições Definitivas” das mesmas histórias do que trazer trabalhos como O Messias e tantos outros à luz dos novos leitores. O fato é: O Messias é uma das maiores histórias do Batman, e continua atual mesmo após 30 anos de seu lançamento. É leitura mais do que necessária para os fãs de quadrinhos.

    Escrita pelo mestre Jim Starlin (criador do Thanos e que também escreveu no mesmo ano de 1988 a icônica Morte em Família) e com desenhos de Bernie Wrightson (co-criador do Monstro do Pântano), O Messias nos apresenta a trajetória de um Batman capturado, drogado e à beira do colapso mental e emocional. Entregue à inanição e à confusão, Batman perde todos os pilares que permitiram com que Bruce Wayne se tornasse o Batman (ou que permitiram ao Batman continuar sendo Bruce Wayne). A história abre em meio a um devaneio de Bruce, para depois descobrirmos que o Cavaleiro de Gotham está cativo, refém de “homens comuns”. Não há figurinos excêntricos e nem engenhocas, nem moedas gigantes ou tiranossauros-robô, apenas selvageria e rancor humano. Com o avançar da história, entendemos como Batman chegou àquele ponto, e conhecemos também o Diácono Blackfire – o responsável pela desordem que assola Gotham. Batman então precisa salvar a si mesmo e ao povo de sua cidade, travando uma batalha mental e ideológica com o xamã.

    O mais interessante em Batman: O Messias é notar a dialética criada por Starlin, que deixam o conflito e o embate moral sempre presente nas páginas da hq. O contraste presente na humanização do Batman e na mistificação de Blackfire desconstroem nossa imagem do herói, trazendo real desesperança e urgência para o leitor. Desta maneira, Starlin nos relembra que o Batman é somente um homem e que, apesar de todo ar conspiratório e “pseudo-sobrenatural” presente na trama, Blackfire também pode ser. E isso é doloroso. Ao percebermos que um homem comum, guiado por sua própria moral e ambição, pode destruir o Batman, somos confrontados com uma verdade ingloriosa. Apesar de seu treinamento e disciplina que o permitem enfrentar figuras divinas como o Superman, o Batman ainda é só um homem por trás de uma máscara. Ver Bruce entregue a descrença, questionando sua cruzada e quebrando seus códigos até então inabaláveis, como utilizar armas de fogo e sentir prazer na violência, é um choque. E isso tudo é potencializado pelos desenhos quase fantasmagóricos de Wrightson e pelas cores alucinógenas e repletas de toxicidade de Bill Wray (que lembram de certo modo a colorização de John Higgins para A Piada Mortal). A decadência é pulsante e os quadros parecem ter propriedades psicotrópicas. Batman: O Messias talvez seja uma visão amarga demais para alguns leitores – que, mesmo que não tenham apreciado a proposta, devem se esforçar pra chegar ao fim das minissérie para ver o que é realizado na história como um todo.

    Ainda sobre a dialética proposta por Starlin, temos as ideologias. O debate de idéias. E é justamente aqui que O Messias rompe os limites e se torna uma história política e atemporal. A figura do Diácono Blackfire é a representação do líder manipulador, que utiliza de ferramentas de lavagem cerebral para disseminar o ódio. É escondido atrás de uma ideia, de uma falsa moral, de um sistema, que Blackfire constrói um exército de furiosos e de “injustiçados”, prontos para reaverem aquilo que lhes foi tirado – ou nunca oferecido. Veja que interessante é: mesmo sem fazer ligações com personagens da vida real, você que está lendo este texto com certeza já imaginou algum rosto enquanto lia este parágrafo. Aí reside a genialidade da trama, que não precisa apontar dedos. A história da humanidade é repleta de falsos salvadores, que usam das fraquezas dos homens e mulheres de seu tempo para agir em nome de seus próprios interesses. E são muitas as estruturas que permitem com que figuras apareçam de tempos em tempos para manipular a opinião pública. Em O Messias, Blackfire utiliza da religião, da punição e de promessas de igualdade e redistribuição de poder (não é a toa que estas características podem ser encontradas em lados opostos de posições e pensamentos políticos). De acordo com a evolução dos acontecimentos, vamos vendo a inclusão de novas perspectivas, que vão questionando a polarização, o descontrole, a histeria de Gotham e da figura popular que se tornou o diácono.

    Apesar da atenção se concentrar ao redor de Batman e Blackfire, também temos espaço para outros personagens brilharem na trama. O maior destaque, certamente, é Jason Todd. Aqui, o segundo Robin aparece de forma radiante, positivista. A luz que falta ao Batman. Talvez só Para o Homem Que Tem Tudo tenha trazido outra aparição tão gostosa de ler do personagem. O Jason Todd de O Messias em nada lembra o Robin que ganhou a antipatia do público e teve sua sentença de morte declarada. Gordon e outros seguidores do culto de Blackfire também estão a todo momento representando os lados antagônicos da moeda. Os cidadãos de Gotham tem seu espaço de fala, e a mídia também é um importante recurso de contação de história, assim como em The Dark Knight Returns. Todos tem seu papel nesta arena de conflito de ideias. E no fim, é exatamente para onde a dialética O Messias nos leva: uma arena, entregues à fome, fúria, loucura e à selvageria humana – que por si só é igualmente dialética, tão ancestral e tão contemporânea ao mesmo tempo.
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    Enfim…
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    Batman: O Messias é uma das maiores histórias do Homem-Morcego, uma grande obra de (nona) arte feita por Starlin, Wrightson e Wray – infelizmente, esquecida e desconhecida por muitos. Profundamente política, O Messias nos apresenta uma queda vertiginosa e dolorida do morcego, causada pela toxicidade do Diácono Blackfire. Não é a toa que o ódio e a loucura vivem abaixo de Gotham, nos esgotos, pulsando escondidos na cidade. O radicalismo e o extremismo estão mais próximos do que imaginamos. O Messias nos mostra, parafraseando Alfred Pennyworth no recente Batman Vs Superman, “a febre, a raiva que transforma homens bons em cruéis“. E nem mesmo o Batman esta à salvo do frenesi político e ideológico.

    Rodolfo Chagas
    Rodolfo Chagashttps://terraverso.com.br
    Sou daqueles que saía correndo na saída da escola pra almoçar assistindo Liga da Justiça. Daqueles que juntava o troco do pão pra comprar gibi no sebo. Feliz de viver na melhor época pra ser nerd. Sem editorismo, amai-vos uns aos outros! A alvorada dos heróis ainda vai durar por muitos anos! Que Snydeus seja louvado e que Stan Lee viva pra sempre!

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