Coringa | Não uma ode à violência, mas uma ode ao desejo por violência

    “Já temos críticas sem spoilers de Coringa no Terraverso. Esta é uma crítica complementar, que visa analisar alguns aspectos técnicos e cenas do filme com um pouco mais de profundidade, sem se preocupar com spoilers. Recomenda-se, antes, assistir ao filme, pois algumas revelações do enredo podem estragar sua experiência. Recomenda-se também ler a minha crítica anterior sobre o longa, pois ela aborda aspectos que não serão retomados aqui.

    Com amor, R. C.”

    Com uma última dança macabra – que evoluiu de partituras físicas com leveza similar a do Tai Chi até movimentos enérgicos e vibrantes – Coringa encerra o ciclo de transformação de Arthur Fleck. Com um último vislumbre sobre o já famoso vilão e uma risada libertadora – a única, de fato real, que vemos no filme – o Príncipe Palhaço do Crime caminha ao som de That’s Life e nos deixa ainda desconcertados, sem saber direito o que sentir.

    Coringa é um filme provocador, goste dele ou não. Uma ruptura no cinema de super-heróis, de maturidade nunca vista antes e que pode ser colocado ao lado de projetos audaciosos e que buscam espaço nas premiações – ou, que simplesmente, querem comunicar algo através de uma história contada no cinema. O longa é rico o suficiente para portar simbologias e alegorias e, através de sua construção, incitar discussões pertinentes acerca da ficção e da realidade. Por isso, revisitar Coringa é extremamente importante, principalmente para buscar novas camadas de significado e de leitura, proporcionadas pelo trabalho técnico primoroso.

    Durante os 212 minutos, o diretor Todd Phillips brinca com a antítese entre o confinamento e a liberdade, que se reflete em toda a composição de suas cenas. No início do filme, durante a sequência onde Arthur tem sua placa roubada e apanha em um beco de Gotham, já vemos dois elementos que refletem este jogo.

    Primeiro, o próprio beco em si. Ao longo do filme, veremos diversos ambientes fechados (corredores, túneis elevadores, vagões, multidões, geladeiras), que sufocarão Arthur. Estes ambientes representarão o mundo interno do (pro[anta])gonista e causarão sensação claustrofóbica no espectador, além de simbolizarem momentos de importante mudança gradual para que Arthur se torne o Coringa. É só lembrar como todos os momentos importantes da trajetória do personagem são antecedidos ou seguidos destes ambientes de aprisionamento. Sua surra, o encontro com Sophie (Zazie Beetz), sua demissão, os assassinatos dos Yuppies, sua apresentação de stand-up, o roubo do histórico de sua mãe no Arkham, a saída do apartamento de Sophie, o assassinato de Randal (Glenn Fleshler), a fuga no metrô, sua consulta no Arkham – já ao final do filme. Também é muito peculiar notar que o assassinato dos Wayne e o nascimento do Batman ocorrem, justamente, em um beco, criando um eco com esta cena que antecede o título.

    Um momento interessante que representa bem a construção do aprisionamento no longa é a sequência da geladeira. Além de Arthur se enclausurar em um ambiente nada comum, a condução da cena fortalece esta ideia. Phillips utiliza as paredes que separam os cômodos para mudar a razão de aspecto do filme, indo para um enquadramento que deixa a tela mais próximo ao 4:3. Desta forma, vemos Arthur em um momento de sufocamento e instabilidade já em uma disposição que nos coloca em igual situação.

    O segundo elemento é, justamente, o título. O título já nos é mostrado tomando toda a tela, escapando dos limites. Com Arthur em posição fetal, marginalizado, entendemos o essencial: esta é a história de um nascimento, e ele se dará pois algo já está a beira do colapso, da explosão. E não só Arthur Fleck está sobre pressão, mas toda a cidade de Gotham.

    O lixo que se acumula nas ruas, uma metáfora bem clara, vai tomando as laterais dos planos que retratam a cidade. Arthur não é o único cidadão quebrado de Gotham, e não causará intencionalmente a pseudo-revolução que veremos ao longo do filme. Ele será alçado ao posto de símbolo – esta é outra simbologia, também bastante clara e que parece ter sido sumariamente ignorada por muitos. Coringa não é uma ode à violência, mas uma ode à nossa sede de violência. Arthur representa tudo o que há de doente em uma sociedade e que, mesmo assim, consegue a atenção e o carisma daqueles que, igualmente doentes em diferentes proporções, o elegem como um representante, um porta-voz – projetando no Palhaço todas as suas frustrações e desejos, como Arthur fará ao longo do filme.

    Não é por acaso que Phillips e Silver incluem outra símbolo bem pertinente: os ratos. Ou melhor, super-ratos. Além da lógica relação com o lixo, não podemos esquecer que o Batman é um “rato alado”, como muitos de seus vilões gostam de ressaltar. E este rato também nascerá nesta cidade suja – mas se colocará do outro lado da balança. Na rápida cena em que vemos Bruce e os Wayne no chão do Beco do Crime, temos uma rápida passagem de ratazanas ao fundo da cena. Há um antagonismo construído. Bruce será como um predador natural, inserido em um ambiente com uma superpopulação de alguma peste que precisa ser controlada. Batman será o herói de Gotham, não o Coringa. Uma rápida citação ao conto (inspirado em fatos reais) O Flautista de Hamelin deixa isto bem claro. O Coringa será a melodia caótica e irresistível que fará com que todos os ratos de Gotham saiam das frestas da cidade. O Coringa só vai expor o pior de Gotham – que sempre esteve lá – e, como um produto da própria Gotham, expor o pior de si – que sempre esteve lá.

    Arthur não é um modelo de humanidade, por isto o filme sempre faz questão de nos lembrar que ele está indo na contramão. Não só seus costumes e personalidade são idiossincráticos demais, mas durante todo o filme Arthur está migrando para antagonizar a sociedade – justamente por não se encaixar na ordem natural e lógicas deste coletivo. Por isto, Arthur tem mais sorte quando está indo em sentido contrário, como ao entrar no hospital pela porta de saída ou ao fugir dos detetives Garrity (Bill Camp) e Burke (Shea Whigham) pelo contra-fluxo no metrô. As escadas também tem importante papel narrativo e discorrem mais claramente este aspecto. Quando Arthur tenta viver uma vida normal, isto é, pelas leis da sociedade, subir as escadas é um martírio – e a cidade se sobrepõe a Arthur, engolindo-o no caos urbano. Quando aceita sua transgressão, Arthur desce as escadas. Sem peso, leve e liberto, com a câmera valorizando sua persona com planos contra-plongeé (de baixo para cima), cores intensas e trilha sonora celebrativa.

    A transformação de Arthur Fleck no Coringa é o cerne do filme. Todos os aspectos técnicos do filme estão agindo a favor disto. Porém, a maquiagem é o recurso que merece uma atenção particular – afinal, é uma das maiores construções do filme e um de seus maiores trunfos nas premiações que virão.

    A maquiagem está totalmente ligada á criação do vilão e é um importante elemento narrativo de Coringa. A maquiagem utilizará o azul e o vermelho alaranjado – cores opostas no círculo cromático – para trazer o conflito e atrair o olhar do espectador. As cores aparecerão em diversos momentos no filme, como na cena do protesto no Museu de Gotham ou nas diversas sirenes de carros de polícia. A maquiagem também é semelhante a pintura facial utilizada pelo serial killer John Wayne Gacy – o clube de comédia onde Arthur se apresenta se chama Pogo’s, justamente o nome de palhaço de Gacy. A maquiagem, intencionalmente ou não, também lembra a do Coringa desenhado por Enrico Marini em Batman: The Dark Prince of Charming. Os desenhos possuem pontas afiadas – diferente do utilizado por palhaços de festa, que usam pontas arredondadas para evitar a assustar as crianças.

    A concepção de Nicki Ledermann (O Irlandês, O Rei do Show, O Diabo Veste Prada) também brinca com a assimetria, tendo lados maiores do que o outro, o que faz todo o sentido para com a ficção da narrativa (já que Arthur não seria capaz de realizar uma maquiagem perfeita), como também para as diferentes simbologias e, de quebra, também fortalece a escolha da atuação de Phoenix, que está sempre utilizando muitas expressões faciais e, na maioria das vezes, também explora a assimetria entre o lado direito e esquerdo do rosto. A maquiagem, portanto, traz todo o desequilíbrio e instabilidade de Arthur.

    O grande mérito de Ledermann e do departamento de maquiagem, no entanto, não está na criação da maquiagem. Está na destruição. Desde a primeira cena do longa, somos convidados a olhar a maquiagem padrão de Arthur como uma prisão – como algo puramente externo, que não condiz com seu estado de espírito. A maquiagem será borrada por lágrimas e suor durante todo o filme, criando vazamentos e falhas que traduzirão seus caos em imagens. As sobrancelhas, inicialmente suaves e amigáveis, ganharão mais destaque e ficarão mais grossas de acordo com sua transformação. A tinta branca também, inicialmente fosca, vai ganhar brilho quando o Coringa nascer. A maquiagem e as roupas do Coringa serão um dos poucos elementos brilhantes no filme, junto com o fogo e com as luzes – que vão representar a glória e os desejos de Arthur.

    É interessante notar que o personagem, antes de se concretizar como o Palhaço do Crime dançando Rock e Roll Part II na escadaria, passará por uma fase embrionária. Quando Randall e Gary (Leigh Gill) são recepcionados por Arthur em seu apartamento, o personagem está com o rosto todo branco e sem nenhum tipo de pintura, agindo de modo quase animalesco. Na crítica sem spoilers, traçamos um paralelo com o Coringa e as máscaras gregas da Tragédia e da Comédia. Nesta cena, é como se Arthur vestisse uma Máscara Neutra – isto é, uma máscara sem emoções, usada para o condicionamento e treinamento de atores antes que estes vistam máscaras mais expressivas ou que possuam linguagem própria. É nesta cena também que a maquiagem de Arthur ganha o realce do sangue (e vice-versa), e a relação da face do Coringa com a violência seguirá até o fim do filme, com a morte de Murray e o desenho do sorriso feito com sangue.

    Coringa é um mergulho na consolidação de um criminoso violento, nos oferecendo o vislumbre de uma psique doente e quase destinada a virar-se contra a sociedade. Mas o filme é, antes de tudo, uma ficção – óbvio. Uma obra de arte crua e ácida que não procura a apologia, mas a observação. É através da observação – do olhar crítico – que podemos nos voltar para a vida real, para os problemas reais de pessoas reais, e reavaliar nosso passado, presente e futuro. Phillips e Silver sabem exatamente no que estão mexendo – e é por isso que antecedem cenas ou decisões de roteiro que possam servir de estímulo aos espectadores que já estão predispostos a serem influenciados por Coringa. No próprio filme já temos contrapontos que permitem com que nos debrucemos e debatamos com a obra, mas é importante estar disposto a fazer isto: debater a obra. Refleti-la.

    Phillips e Silver optam por uma trama aberta, com diferentes interpretações, justamente para que o filme não possa ser determinado com exatidão. A confusão entre a verdade dos acontecimentos e a verdade do protagonista já deixa importantes lacunas que obrigam o espectador a sair da sala de cinema procurando respostas. Ou seja, o espectador é puxado para o debate, tendo que olhar Coringa como uma obra ficcional. Esta história “múltipla escolha” também é uma excelente forma de trabalhar a ambiguidade de A Piada Mortal de uma forma muito mais refinada para a linguagem cinematográfica. Em A Piada Mortal, temos cortes entre o passado possível do Coringa e o presente, falas pontuais para tornar a narrativa duvidosa e muitas transições que funcionam como match-cuts (transições que ligam planos diferentes e que se correspondem, sejam em imagem, movimento ou assunto). Apesar de funcionarem muito bem na graphic novel, traduzidos para o audiovisual estes recursos poderiam soar desinteressantes e enfraqueceriam a adaptação – algo que a animação de A Piada Mortal não entendeu, originando um resultado pouco inspirado e que não faz jus ao material de origem.

    Arthur, por mais sofrido que seja, em nenhum momento é levado como um exemplo a ser seguido. Suas ações não são justificadas. Suas vítimas não são somente pessoas “más”, são todos aqueles que se tornam objetos de sua vingança pessoal e frustração. Seu passado não é explorado a fundo – e não sabemos com exatidão porque o personagem já havia frequentado o Arkham e nem porque, como ele mesmo diz, “não deveria ter uma arma”. Talvez estes não sejam os primeiros delitos de Arthur. Seus remédios só são cortados depois que comete os primeiros assassinatos. Sua cobiça e seu narcisismo são pontuados em diversos momentos do filme, frutos de uma necessidade de afeto e aceitação. Arthur era um barril de pólvora, preparado pra implodir e explodir ao menor sinal de stress. Por mais que Arthur tivesse uma alma ingênua e a necessidade real de levar risos e alegria para as pessoas (afinal, alguém que depois de ser espancado e assaltado faz uma flor espirrar água para não perder a oportunidade de fazer uma piada, tem uma alma de comediante), não havia somente isto dentro de si. E assim é: todos somos “bons” e “maus”. Somos complexos, temos defeitos e qualidades, interesses, traumas… e o poder de decisão diariamente nos é testado. A diferença é que Arthur, dado seu histórico de doença mental e negligência durante a infância, havia predisposição maior para que o stress diário o transformasse em um criminoso violento – talvez Arthur não estivesse nas melhores condições psíquicas para exercer seu livre-arbítrio da maneira mais sã possível. Quando o filme evidencia isto, porém, não está eximindo a culpa de Arthur, apenas está apontando que nós, como sociedade, também somos responsáveis por nossos próprios monstros.

    Coringa realiza uma construção muito perspicaz que traça paralelos entre as diferentes motivações para a criação de assassinos – e que evidenciam o quanto o filme busca proteger seus espectadores, evitando ligações mais diretas e deixando-as em camadas de leitura mais subliminares. A começar, a construção de Arthur. Não é possível apontar com exatidão qual seu(s) distúrbio(s) psicológico(s). Portanto, dificilmente alguém poderá se reconhecer completamente com Arthur, que tem uma psique muito complexa e de difícil compreensão – e o mérito é, especialmente, de Phoenix, que realiza uma construção de personagem impecável. Arthur é imprevisível e caótico, sendo uma ótima releitura destes adjetivos tão costumeiros ao Coringa – e que nunca havia sido mostrado desta forma, mesmo chegando aos seus 80 anos de história.

    Joaquin mostra diferentes facetas do Coringa, estando sempre em mutação. Arthur Fleck é mostrado como um homem doente, frágil e patético. Não há glamourização neste Coringa, por mais que ele desperte o interesse do povo de Gotham e se ostente como um símbolo poderoso. Arthur não consegue completar suas frases de efeito, nem tem planos estruturados. Arthur apenas reage, levado por seus impulsos. Arthur é mostrado de forma muito crua como um homem quebrado e sem controle, ficando bem distante da auto-imagem que possíveis assassinos, terroristas e criminosos violentos possuem.

    Ao longo do filme, podemos notar que são inseridas ligações que remetem ás naturezas de diferentes tipos de padrões e que acabam transformando Arthur em uma espécie de “maníaco zero”. Estes comentários são ora explícitos, ora sutis, mas todos se sustentam pelas próprias cenas que são construídas. Podem ser ou não intencionalmente colocados por Phillips e pelos demais profissionais envolvidos no filme. Pouco importa, na verdade, se estas interpretações partiram originalmente de seus idealizadores – uma obra de arte, depois de pronta, é construída também por quem a observa. O importante aqui é notar como Coringa é rico o suficiente para permitir ao espectador se debruçar, buscando por diferentes leituras e simbologias – que, desde que sejam coerentes e podem se validar pelo que está sendo mostrado em tela, são totalmente válidas.

    Temos, por exemplo, as mortes em família. A alienação parental é um dos temas principais de Coringa e é um dos fatores de risco para o nascimento de criminosos violentos. Na cena em que Arthur está dançando com a arma e encenando uma discussão na sala de seu apartamento, o personagem mira rapidamente para uma poltrona. Esta poltrona, veremos mais tarde, é onde sua mãe costuma se sentar. Poltronas também costumam ser chamadas de Dad Chair, “poltrona do papai”. Arthur, portanto, está apontando sua arma e sua fúria para seus pais. Veremos que Arthur projeta diferentes figuras paternas em busca de aceitação e afeto – e como estes homens acabam decepcionando-o. A morte de cada um de seus “pilares”, resultado de suas próprias ações, será a libertação/rompimento definitivo de Arthur para se tornar o Coringa. A discussão do papel dos pais na formação do indivíduo e o desenvolvimento de crianças traumatizadas será retomada no fim do filme, fechando o ciclo, com a rápida imagem de Bruce Wayne na fatídica noite em que acaba perdendo sua família. Isso nos leva a perguntar: Como será o Batman desta realidade? Este “Batman possível” está destinado a ser tão doentio quanto este Coringa? Ou será, de fato, um símbolo sombrio de esperança incorruptível?

    Na mesma cena da encenação com a arma, momentos antes, Arthur passa a mira de seu revólver pela televisão durante uma cena do filme Shall We Dance, estrelado por Fred Astaire. A cena em questão é o número musical de Slap That Bass e tem um contexto muito interessante. Nesta cena, Astaire, um dos dançarinos mais influentes da história do cinema, se senta para admirar um grupo de homens negros trabalhando e cantando. O ator presta uma singela homenagem aos artistas negros, com a música de uma artista negra, e reverencia-os como parte de sua inspiração na música. Apontar a arma para este número musical é, portanto, muito significativo – e pode ser lido como uma menção aos crimes de preconceito racial.

    A música em si também diz muito sobre o universo do filme, e a presença de Astaire também remete a algumas das histórias onde o Coringa mostra seu gosto “clássico” pelos artistas da Era de Ouro do entretenimento. As músicas de Frank Sinatra presentes no longa e a projeção de Tempos Modernos também fortalecem esse aspecto. Também é importante notar que ao longo do filme Arthur entra em rota de colisão com mulheres negras – e possivelmente assassina três delas. Pode não existir, necessariamente, uma verticalização na discussão do feminicídio negro. Porém, o filme te dá elementos pra refletir esta relação – a mulher negra e o homem branco – e esta construção não é por acaso.

    Ainda dentro desta temática, é importante notar que Arthur comete atos de violência contra brancos e negros. Isto pode ser lido como mais uma das provas de cuidado do longa com sua narrativa, antecipando construções que possam influenciar espectadores com predisposição a usarem Coringa como um subterfúgio para impulsos e atos criminosos. Quando o personagem comete crimes que atravessam o limite étnico (isto é, que não focam apenas em sua própria raça nem concentram-se em outros grupo raciais) o longa impede que boa parte dos assassinos em séries se reconheçam plenamente no personagem, já que poucos destes criminosos tem como padrão escolherem suas vítimas transitando por diferentes etnias.

    O bullying e a violência social estão bem aparentes na narrativa de Coringa. Arthur, que não consegue construir relações por ser diferente, vai mostrar uma crescente frustração que resultará em atos de fúria e revanchismo. Após matar Randall, Arthur deixa Gary ir embora como uma recompensa por ter sido o único a “ser legal” com ele. Este falso ato de generosidade é um modus operandi dos atiradores e terroristas casuais, e a frase é bem similar a dita por um dos assassinos de Columbine. Este gesto não é piedoso, mas uma demonstração de poder, uma forma de usufruir do controle conquistado pela violência e pelo impulso de matar.

    Pouco antes de Arthur entrar no palco do show de Murray Franklin, o apresentador comenta com uma psicóloga que o “próximo convidado” é um caso a ser estudado. A doutora pergunta, então, se Arthur tem algum distúrbio de ordem sexual. A relação entre sexualidade e violência também está presente no filme. De fato, a presença da personagem Sophie é um importante pilar para que possamos estudar a relação de Arthur com o sexo e com o amor – ou reconhecê-lo como um predador sexual.

    Há uma leitura possível e bem interessante que nos permite constatar que Arthur enxerga Sophie e sua filha, Gigi, como uma única pessoa. Quando Arthur encontra as duas no elevador, Sophie comenta que o prédio em que vivem é horrível. Em seguida, Gigi repete, “o prédio é horrível, não é, mamãe?”, e Sophie a repreende, “nós já ouvimos você dizer isso, Gigi”. Ou seja, nenhuma frase foi dita por Sophie dentro do elevador, mas sim por Gigi – e Arthur projetou a fala em Sophie. Isto serve tanto para entendermos como a mente de Arthur funciona na ficção construída como também nos permite analisar que ambas as personagens estão se espelhando.

    Na cena do elevador ambas também estão vestidas de forma similar e trajadas na cor vermelha – que já apontamos na crítica anterior que tem um significado muito particular dentro do filme, simbolizando a impenitência, o desejo, a destruição e a morte. Quando Arthur segue Sophie por Gotham, temos este contraste do vermelho ainda mais destacado junto a cores pastéis de roupas e paisagens. Nesta sequência, também vemos Sophie deixando Gigi na escola, enquanto tira um óculos de seu rosto e coloca no rosto da criança. Esse gesto, por si só, não tem significado lógico para a narrativa. Poderia ser facilmente substituído por uma ação cotidiana, como um beijo na testa, um abraço ou um arrumar de cabelo. Este gesto, portanto, possui um significado simbólico ou, ao menos, quer nos convocar para uma reflexão mais atenta. Faz todo sentido que interpretemos este gesto como mais uma forma de mostrar que ambas as personagens estão se espelhando. Logo, quando Arthur olha para Sophie, não vê apenas Sophie, mas sua filha também – e vice-versa. O mesmo vale para o desejo que sente por Sophie – que, nas entrelinhas, também pode indicar a impulsão da pedofilia.

    Mais tarde, quando Arthur descobre o histórico de sua mãe no Arkham, retorna para o prédio e entra no apartamento da dupla. Arthur então passa a mão pela mochila de Gigi e por outras roupas de Sophie que estão penduradas. Depois, se senta no sofá e pega alguns trabalhos escolares da menina. Quando Sophie o encontra, Arthur fala sobre o “dia ruim” que teve, ao estilo A Piada Mortal, e faz o gesto do tiro na cabeça. Nesta cena Sophie está com parte de suas coxas á mostra e não está de vermelho (uma preocupação muito clara da técnica do filme em não usar uma cor que pode ganhar a leitura de amor, paixão ou tesão em uma cena que constrói uma provável sugestão de violência sexual). Arthur, nesta leitura possível, pode ter cometido o estupro da mãe e da criança, seguido de um duplo homicídio. Sua saída do apartamento, com a câmera em contra-plongée (de baixo pra cima) e com a trilha sonora em súbito crescendo, pode corroborar para a interpretação da morte de Sophie. Mais importante, esta transgressão de Arthur é importante tanto para a ficção construída (a partir deste momento Arthur vai abraçar definitivamente a destruição) como para o espectador (este é o momento de virada onde o espectador percebe que não há mais volta, o longa mergulhará no definitivo nascimento de um maníaco homicida, e a tensão será constante até o fim).

    Se interpretamos que Arthur matou, de fato, Sophie e Gigi, também podemos olhar o personagem com menos condescendência e chegar a conclusão de que a violência de Arthur não é uma resposta para as agressões e ao abuso da sociedade. Seus atos são uma forma distorcida de retomada de poder, em nome de seus interesses pessoais, que afetam a tudo e a todos em seu caminho e que só colaboram para que este círculo de ódio continue funcionando.

    O papel da mídia é um tópico importante dentro de Coringa, que se influencia diretamente em The Dark Knight Returns e em filmes da Nova Hollywood que também abordavam o tema, como Rede de Intrigas e Um Dia de Cão. Vemos que nesta Gotham o sensacionalismo, a frieza e a desumanização – sobretudo da televisão – são ferramentas que instauram uma aura pessimista nos cidadãos, transformando a cidade em uma grande panela de pressão. O entretenimento cego, isto é, que não repensa o espaço de fala que detém, acaba contribuindo para criar o estado de histeria coletiva. Chega um momento em que não é possível afirmar se a realidade dita a mídia, ou o contrário. No fim, o símbolo que Arthur Fleck assume não foi criado por ele, mas pelo próprio povo e pela mídia.

    Phillips, de forma muito inteligente, utiliza um dos momentos mais importantes do filme para evidenciar isso. Quando o Coringa aguarda para entrar no palco do show de Murray, vemos a preparação do palhaço antes do abrir de cortinas. Uma última metamorfose antes da grande estréia – de assumir-se como Coringa. Porém, não acompanhamos diretamente Arthur entrando no palco. Phillips nos leva até um televisor e nos mostra a entrada do Coringa, nos conduzindo para uma câmera por trás da câmera. Vemos um novo homem. Sedutor, confiante, perigoso. É o nascimento do Coringa para o mundo.

    Mas, se acompanhamos por todo o filme a formação do vilão, por que Phillips tira exatamente este momento do espectador, impedindo que sua câmera registre este exato ponto da trajetória do Coringa? Phillips cria um momento de ruptura, de distanciamento, para que possamos visualizar o quadro que se montou. Neste momento, Arthur alcançou seu sonho – mesmo que não exatamente da forma que idealizou. Arthur é alguém. Arthur está sendo visto. Esta cena também fecha o ciclo dentro desta temática. A mídia negligente fomenta a violência, ou seja, constrói o símbolo do Coringa, e o Coringa volta-se contra a mídia e acaba utilizando-a para propagar-se como símbolo. Um ciclo vicioso. Uma dialética ainda mais interessante quando pensamos na vida do filme fora das salas de cinema, em como Coringa foi recebido por parte dos veículos de imprensa e “formadores de opinião”.

    Realizar críticas elaboradas ao filme, baseadas em seus aspectos técnicos e que buscam na construção audiovisual argumentos que comprovem sua “apologia ao crime” e seus “gatilhos”, é uma coisa. O problema é a repetição do discurso, vazio de formação real de reflexão, que tem como preocupação aproveitar da polemizacão para gerar acessos, views, minutos de permanência em página. Se, de fato, tivermos um acontecimento trágico relacionado a Coringa, conseguiremos apontar com exatidão até que ponto a influência é do longa e até que ponto é da aura instaurada a ele?

    Outra visão importante sobre a cena da entrada do Coringa é que Phillips nos tira da perspectiva de Arthur pela primeira vez para nos mostrar como o povo de Gotham está olhando o Coringa. O glamour da realidade imprecisa da televisão contribuirá para que o povo transforme o palhaço em seu porta-voz. Nós, por outro lado, veremos Arthur sob stress, instável e agindo por impulso – temos a visão de que é um homem doente. Podemos olhar seu conflito interno após tomar a decisão de matar Murray ao vivo. Pela televisão, a imagem perde suas nuances. Perde sua proximidade. O mundo pode estar olhando para Arthur, mas ele continua invisível. Seus problemas continuam invisíveis. Tudo o que se vê é o Coringa, um homem sem passado, sem nome e definido por seus atos de violência.

    Depois de assistir Coringa e ao analisar a resposta ao filme, podemos afirmar que o filme poderia ser realizado com qualquer outro personagem original, sem ter nenhum tipo de ligação com o personagem. A resposta é: sim, claro. Mas, na verdade, qualquer filme poderia ser outro em vez daquele que ele é. Tubarão poderia se chamar Morsa e trazer um mamífero assassino de 200 kilos atacando banhistas na praia. Porém, obviamente, o filme não seria o mesmo. Nem melhor, nem pior, mas outro.

    O ponto é: O Coringa é um símbolo. É um personagem de 79 anos de idade – logo 80 – e que continua servindo como alegoria para a violência e insanidade. Um retrato de nossa contemporaneidade, que muitas vezes deixamos de olhar. E este filme não teria o mesmo impacto se não fosse com o Palhaço. A resposta ao filme é a maior prova disso. O medo de sua influência. O interesse por sua origem. Nossa indecisão entre o fascínio e a repugnância. Afinal, não é vergonhoso admitir: nós gostamos da violência, do pornô e da vilania. Gostamos da catarse dos impulsos mais obscuros – os quais não podemos liberar. Coringa é um filme cínico que nos convoca a decidir o que é certo e o que não é. O que deve ser usado como exemplo e o que não deve. Existem aqueles que sairão da sala de cinema achando que o vilão é um símbolo de resistência? Sim. Haverão aqueles que acharão que Coringa é uma ameaça pública? Sim. Porém, Coringa é… um filme. E, como todo filme, só quer contar uma história. Claro que já era de se esperar: o Coringa nunca deixaria uma mensagem sem incitar o caos.

    Rodolfo Chagas
    Rodolfo Chagashttps://terraverso.com.br
    Sou daqueles que saía correndo na saída da escola pra almoçar assistindo Liga da Justiça. Daqueles que juntava o troco do pão pra comprar gibi no sebo. Feliz de viver na melhor época pra ser nerd. Sem editorismo, amai-vos uns aos outros! A alvorada dos heróis ainda vai durar por muitos anos! Que Snydeus seja louvado e que Stan Lee viva pra sempre!

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