[Artigo] Aves de Rapina | Muito além de uma “decepção”

    No Oscar 2020, a atriz Natalie Portman trajava um vestido com nomes de diretoras esnobadas pela Academia naquela premiação. Dos dez diretores indicados, nenhuma era mulher, e aliás, em 90 anos de premiação, apenas duas mulheres foram indicadas ao prêmio de Melhor Diretor, dentre elas, uma vencedora. Noventa anos e DUAS mulheres indicadas ao prêmio de Melhor Diretor. Esses dados não são aleatórios, eles explicam claramente como a indústria de Hollywood é dominada por homens e está totalmente dedicada a agradá-los, em primeiro lugar.

    Aves de Rapina: Arlequina e sua Emancipação Fantabulosa, o último filme da DC, carrega com ele algo que podemos nos orgulhar nessa nova leva de produções: é totalmente original, TOTALMENTE. É o primeiro filme de heróis protagonizado e dirigido por mulheres. É uma visão feminina sobre esse mundo onde garotinhos são ensinados desde cedo que quadrinhos é coisa de menino e garotas, bem, vocês devem ficar de escanteio. É essa lógica esdrúxula que Aves de Rapina decide enfrentar, e no final, o maior vilão do filme não está na tela, mas sim do outro lado dela.

    Como era de se esperar, muitos garotinhos não gostaram da ideia de um filme protagonizado por mulheres e dirigido por uma. Logo quando foi anunciado, os comentários se espalharam na internet. Algo muito comum era dizer que o filme era descartável, que outros filmes poderiam ser feitos no lugar. Vamos separar o trigo do joio. Alguns que consideraram o filme uma perda de tempo, estavam traumatizados com o Esquadrão Suicida e não dá para negar que é um bom motivo, mas, outros na verdade, estavam sentindo que seus brinquedinhos estavam sendo tirados das suas mãos.

    Quadrinhos, assim como boa parte da cultura pop é dirigido por homens. A visão masculina sempre foi impressa na maioria das histórias que lemos e assistimos desde sempre. Uma prova disso é como diversas personagens de quadrinhos vestem roupas super apertadas e decotadas, mesmo que não faça qualquer sentido. Ninguém nunca desenhou o Batman de cuequinha e com os mamilos ressaindo né? Uma pena. Quando mulheres começaram a escrever, desenhar e dirigir personagens femininos, a ótica mudou. Não só o figurino foi modificado como também a forma como elas eram retratadas. Começamos a deixar de lado a donzela em perigo ou a “gostosona” que visa animar os garotinhos, para abrir espaço para mulheres… reais e… diferentes.

    Mulheres reais, sabe. Pessoas de verdade que vão além de estereótipos ultrapassados e repetidos. Assim, heroínas ganharam histórias novas e uma independência ou mesmo nenhuma necessidade de homens. Agora, a Mulher Gato não seria O PAR ROMÂNTICO do Batman, mas, a… am… Mulher Gato. E quem é a Mulher Gato? Com certeza, assim como uma pessoa normal (com o perdão da palavra), alguém que não vive para agradar, ”amar”, servir alguém. Sabe quem especificamente precisava de uma nova história? A Arlequina.

    Algo que todos concordam é que em Esquadrão Suicida, a Arlequina não pode ser considerada uma decepção como o próprio filme. Margot Robbie domina todas as cenas encarnando a personagem na sua melhor forma. Embora todos tenham amado ela, esse amor é complicado. O cosplay de Arlequina virou o preferido de diversas garotas, enquanto isso, muitos homens ainda a enxergavam como um símbolo sexual e um outro grupo, apenas como a “namorada” do Coringa.

    Quando falamos de cinema, nunca podemos nos esquecer que um blockbuster visa agradar ao máximo de pessoas possíveis, e não somente aqueles que leem quadrinhos. Dito isso, muitos tiveram a primeira relação com a Arlequina em Esquadrão Suicida. Prova disso, é como vários casais se fantasiaram de Coringa e Arlequina, talvez acreditando que essa relação seja algo, digamos, “fofo”. É justamente por essa interpretação errada de quem é a Arlequina ou de quem ela deveria ser, que Aves de Rapina se transforma num filme necessário.

    Um filme necessário foi como eu descrevi Coringa. Na época, fiz diversos textos sobre o filme e como ele dialogava com nossa realidade e diversos problemas atuais. Mas o mesmo não aconteceu com Aves de Rapina. Esse é o meu primeiro texto sobre o filme, e que por sinal, demorou muito para se ganhar a luz do dia. Infelizmente, eu fui um dos que acreditava que o filme não era necessário. Minha visão, felizmente, mudou rápido.

    Ao entrar na sala de cinema, eu não estava acompanhado como de frequência. Esse foi o primeiro filme que eu vi sozinho nos cinemas. Convidei alguns amigos e muitos diziam não ter interesse no filme. Talvez eu precise de amigos melhores e principalmente, de amigas mulheres? Com certeza. A sala estava praticamente vazia. Sentei no fundo e logo avistei umas garotas em algumas fileiras a frente. Em quase todas as cenas, observei as expressões delas. Era uma misto de emoções. Vibravam e se emocionavam, enquanto alguns caras reclamavam entre si balançando a cabeça em negação.

    Após o filme terminar, ouvi os comentários dos rapazes. Em geral era algo tipo, o filme é bagunçado demais ou repleto de “muita militância”. Criticaram também as cenas de luta e as cores do filme. Esses comentários, como sabemos, não foi algo isolado e rapidamente tomou conta da internet, em geral, sempre vindo de homens.

    Ali naquela sala de cinema, eu percebi como a lógica da cultura pop é exatamente como pude descrever anteriormente – feita por homens e primariamente, para agradar homens. Não só quem está por trás dos filmes em sua maioria, são homens, como quem cuida do marketing, quem aprova ou desaprova os projetos, quem libera o dinheiro para produzir, quem dá o sinal verde e quem também critica os filmes. Não é preciso pesquisar muito para percebermos isso. A indústria é dominada por homens, e esses, acreditam que sua opinião e visão são sempre corretas e melhores.

    Aves de Rapina é contra tudo isso. É contra ao que está estabelecido, na indústria e na sociedade. Os comentários negativos ao filme, são na verdade, a prova de que todas essas opiniões são um sentimento de “tomaram o que é meu”. Sabe aquele garotinho que alguém pega o seu brinquedo e não para de chorar até ter de volta? Assim são aqueles que criticaram o filme, com uma grande diferença: são garotos apenas na idade mental.

    Aves de Rapina não é perfeito, como a maioria de todos os filmes de quadrinhos não são, mas como é atuado (nas telas e por trás delas) por mulheres, ele precisa ser. Quando algo é feito por mulheres, ele precisa ter um requisito básico: não ter qualquer defeito. Essa métrica não é usada quando se trata de homens. Ninguém questiona se os filmes são necessários quando os protagonistas são homens. Quantos filmes de quadrinhos nós vimos com a mesma fórmula, do mesmo jeito, com atores diferentes? Quantas vezes críticas foram feitas sobre esses aspectos?

    Agora, um filme de quadrinhos que foi produzido e estrelado por mulheres. UM filme. São 90 anos de Oscar e apenas duas mulheres indicadas como Melhor Diretor, lembra? Aves de Rapina não é somente “uma produção com mulheres fortes”. Isso virou até mesmo uma marca, algo que tem sido muito produzido nos últimos anos. São várias produções com mulheres REAIS, mas, em sua maioria, quem está por trás das telas, são homens. Alguns podem argumentar que falta diretoras mulheres, mas é um argumento que cai por terra. Falta oportunidades, assim como para negros ou LGBTQ+, por exemplo. Somente quando houver oportunidades para as mulheres dirigirem suas próprias histórias, teremos visões mais amplas.

    Não basta ter roteiristas mulheres nas produções para tentar “retratar” o lado feminino. É necessário que elas mesmo, liderem suas histórias e mais do que isso, que possam contar histórias sobre o que quiser. Afinal, mulheres podem e já fazem histórias diversas que vão muito além do que é julgado como senso comum do que é a “ótica feminina”. A mesma diretora que dirigiu Mulher-Maravilha, um filme de uma heroína leve com uma mensagem positiva, também dirigiu um sobre uma prostituta que assassinou sete homens (Monster – Desejo Assassino). Isso mesmo, a mesma diretora. Pode parecer surpreendente para alguns, mas o gênero não define a capacidade de alguém contar uma história.

    Quando se dá oportunidades para que pessoas possam contar suas histórias, independente do gênero, conseguimos ter uma diversidade maior e necessária. Cinema é isso: diversidade e o que mais importa no que diz respeito a um filme, é a sua história, não quem o está produzindo. Não amamos o Tarantino por ele ser homem, amamos o Tarantino pela sua visão artística e isso nada está ligado ao fato dele fazer xixi em pé.

    Parece brincadeira, que em 2020, tantos garotos fiquem revoltados com um filme produzido por mulheres, mas não é de se surpreender. Lembre-se, são garotinhos que tiveram o brinquedo arrancado das suas mãos. Vão chorar e berrar muito, mas felizmente, não vão ter o brinquedo de volta, pelo menos, não se depender da Arlequina.

    Lucas Pimentel
    Lucas Pimentel
    Você acredita em milagres? Também não, mas vivo na esperança de um universo de filmes maravilhosos da DC. Enquanto não acontece, sonho e escrevo.

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