Em 11 de setembro de 1992 ia ao ar na TV americana o 22° episódio de Batman: The Animated Series, Joker’s Favor, “Um Favor Para o Coringa.”
O desenho, tido como uma das melhores adaptações de quadrinhos, fazia história ao ganhar cada vez mais popularidade e conquistar fãs para o Homem-Morcego – mas este episódio em questão se provaria ainda mais importante para o cânone do Batman nos anos seguintes. Paul Dini e Bruce Timm não sabiam ainda, mas tinham dado origem a um dos personagens mais carismáticos e populares dos quadrinhos. Um Favor Para o Coringa marca a primeira aparição de Harley Quinn, a Arlequina, no Universo DC.
Inspirada na interpretação da atriz Arleen Sorkin em uma cena da novela Days of our Lives, a capanga palhacinha chamou a atenção do público e ganhou mais episódios, cravando seu lugar na série animada. A dinâmica que a personagem construía com o Coringa trazia leveza para as cenas com o Palhaço do Crime, além de mostrar novas camadas e leituras com a inserção de um “par romântico”. A dublagem de Sorkin, convidada pela dupla de criadores para dar voz á personagem, também tem grande mérito. Era só questão de tempo para que a Arlequina estreasse nas páginas das HQ’s. E isto aconteceu justamente quando a série animada ganhou seu próprio run, na edição #12.
Interessados em se aprofundar na construção da personagem, Dini e Timm decidiram dar uma origem para a Arlequina, aproveitando para estabelecer algumas de suas características e personalidade. Assim surgiu The Batman Adventures: Mad Love, HQ primordial da personagem e um clássico da história do Batman. Publicada em forma de especial em 1993, Louco Amor foi republicada ao longo dos anos, mas no Brasil chegou apenas nas edições #14 e #15 de Batman – O Desenho da TV em 1995 e em edição especial pela Opera Graphica em 2002. Recentemente, a Panini trouxe Batman: Louco Amor e Outras Histórias, um compilado com histórias da série de Batman: The Animated Series.
Em Louco Amor, após mais um plano frustrado, o Coringa entra em uma crise criativa. Sem novas ideias para usar contra o Batman, o vilão expulsa Arlequina de seu covil – que também inicia sua própria crise existencial, lembrando de seu passado e de como conheceu seu amado. Acreditando que o Cavaleiro das Trevas é o único obstáculo que a impede de construir uma família com o Coringa, a palhaça coloca um plano em prática para eliminar o Batman de uma vez por todas e, de quebra, engatar seu romance com o homem mais perigoso de Gotham. Louco Amor traz todos os elementos que fizeram de Batman: The Animated Series um grande sucesso. História simples e acessível para as crianças, porém muito madura. Traços cartunescos e refinados.
Humor. Louco Amor poderia muito bem ser mais um episódio da série animada, mas Paul Dini e Bruce Timm levam a história de origem da Arlequina até os gibis para explorar possibilidades que, em um desenho com público majoritariamente infantil, não seriam possíveis. É justamente este equilíbrio de tons, da leveza ao tenso, que fazem de Louco Amor uma grande história do Batman – que acabará ditando o próprio tom da Arlequina, acompanhando a personagem por diversas mídias e a tornando tão próxima do público, além de atrelar á personagem a discussão de temas importantes e, até hoje, contemporâneos.
Se vamos analisar a Arlequina, precisamos começar por Bruce Timm. O visual da personagem foi seu primeiro atrativo junto aos espectadores e leitores, e em Louco Amor, Timm se debruça ainda mais sobre seus traços para entregar uma personagem única. O Coringa é um personagem visualmente forte e a Arlequina também precisaria ser para poder ter destaque ao lado do vilão. Se inspirando no visual de bobo da corte da cena de Arleen Sorkin, Timm chegou até o figurino vermelho e preto que conhecemos hoje. A escolha do vermelho é bem inteligente, visto que a cor tem a capacidade de estimular nossos olhos e, psicologicamente, já nos traz significados muito claros: violência e amor. O vermelho usado na série animada é mais claro, próximo ao tomate. Já na HQ, Timm volta ao vermelho mais escuro, mais próximo do sangue – o que traz peso para a personagem e reforça também seu erotismo.
O erotismo, aliás, é um elemento que já justificaria a escolha de levar Louco Amor para os quadrinhos. O erotismo é, inegavelmente, um dos pilares conceituais da personagem proposto por seus criadores – embora hoje esteja mais próximo da sensualidade do que, propriamente, do erotismo. O erotismo não é ligado somente ao sexo, mas também a paixão – o que faz todo sentido para esta personagem, ainda mais dentro de sua história de origem. Romeu e Julieta, por exemplo, é uma história de amor e, também, erótica, e Shakespeare deixa isto bem claro nas linhas e entrelinhas do texto. Timm e Dini fazem o mesmo, apesar de não serem tão sutis quanto o dramaturgo inglês.
Em Louco Amor, Timm realça as linhas do corpo de Harley, dando destaque muito maior para seios, cintura, coxa, bunda, pernas, boca e olhos. Vamos usar as capas do 1st e 2nd prints da HQ para ilustrar isto. Na primeira capa, podemos ver como a cintura de Harley fica muito mais fina, enquanto suas coxas e, consequentemente, seus glúteos, aumentam. Já na segunda capa, os seios da personagem são empinados, em formato de gota, e são realçados pela adição do reflexo da luz no uniforme. Interessante notar também como o Coringa e o Batman, em contraponto ao romance/erotismo de Harley, aparecem como figuras de violência (na segunda capa, a própria Harley ganha um elemento violento, a arma). Esta dialética reforça o caráter erótico de Louco Amor, instituindo uma das relações de ambiguidade presentes no estudo do erótico, que Georges Bataille coloca em seu livro O Erotismo como Eros e Thanatos.
Em resumo, a pulsão da morte de encontro com a pulsão do amor e do sexo (ou seja, a vida). Esta duplicidade entre erotismo e morte é discutida também por Freud. Esta relação é proposta no imaginário da Arlequina por Dini e Timm, que trazem este confronto e/ou relação de forças na própria personagem – uma mulher perigosa e inserida em um mundo violento e que, ao mesmo tempo, possui a ludicidade do palhaço e ideais românticos. É importante notar que seus criadores não estabelecem a Arlequina como uma femme fatale, como outras vilãs já existentes no universo do Batman e em outras obras. A Arlequina não é uma femme fatale e, em certos momentos, age até de forma ingênua e infantilizada. Harley Quinn pode ser vista como uma ramificação neste arquétipo ou mesmo um novo arquétipo – assim como o próprio Coringa, que por si só inspira um imaginário de personagens na cultura.
Na história, a construção que Timm indica nas capas se repete. Harley sempre aparece em poses voluptuosas, que valorizam quadril e/ou glúteos. As roupas marcam bastante seu corpo. A personagem também surge em desenhos que incitam a aparição dos seios ou da vagina, que ficam escondidos por peças de roupa ou pelo próprio movimento. E a arte anda em paralelo com as indicações de Paul Dini, que constrói uma Harley igualmente provocante. Um bom exemplo disso é a sugestiva piada – e livremente traduzida – “Você não quer dar uma voltinha na sua Harley? Vrrrooom, vrroom”. Dini tem a inteligência necessária para não precisar apelar, mantendo sempre o conflito de ideias que já citamos anteriormente e que tornam a personagem tão rica – e com poucas linhas de diálogo, já que Louco Amor não é uma história verborrágica justamente por causa da linguagem de Batman: The Animated Series.
Dini também explora a sexualidade de Harley como uma arma. Ao mostrar os flashbacks de seu passado, Harley é mostrada como uma mulher que sabe o poder que possuí, que usa o sexo como ferramenta de manipulação, assim como sua inteligência, aptidão física e ambição também são. Esta é uma grande sacada de Dini, que nos mostra uma Harley Quinnzel de moral flexível. Portanto, Harley possuí elementos que a tornam um inimigo perigoso, para além de sua associação com o Coringa. Também a coloca em um lugar próprio de análise psicológica e emocional, já que ela não fica presa apenas a manipulação do vilão – Harley tem um background próprio, que nos permite analisá-la além da influência do Coringa e do Batman.
Harley Quinn, portanto, é uma personagem que não é, originalmente, sexualizada sem motivo. Dini e Timm possuem justificativas plausíveis, dentro do que querem comunicar, que nos permite interpretar de outras formas o que está apresentado nas páginas de Louco Amor. Isso significa que não devemos questionar se a personagem é construída de forma fetichista? Óbvio que devemos. Dini e Timm ainda são homens – vejam bem, homens – construindo uma personagem feminina, e seria necessário um grande desprendimento para livrar-se de qualquer tipo de predisposição – consciente ou inconsciente – e olhar de uma forma que não seja sexualmente banalizada, que não seja uma objetificação. A reflexão é válida. É importante não ignorar, porém, as mensagens que ambos deixam na criação da Arlequina e no estabelecimento de sua história de origem. É necessário também comparar as diferentes formas de retratar a personagem, pelos diversos artistas – homens e mulheres, de diferentes opções sexuais – que passaram pela história da Harley Quinn.
É possível afirmar que muitos, sem se atentar ao proposto por Paul Dini e Bruce Timm, não compreenderam o olhar erótico dos artistas sobre a personagem – e aí sim, acabaram por trazê-la de forma banalizada. A evolução da personagem também não pode ser ignorada. Se hoje a personagem é vista de forma menos luxuriosa e não deixa de trazer seus temas é somente graças aos autores que se colocaram no exercício de questionar suas origens – e refletir sobre novas formas de apresentar estar personagem, uma representação do feminino, para o tempo presente.
Usar o erotismo e a paixão como elementos para contar a história da Arlequina não significa, necessariamente, tratar o relacionamento da personagem com o Coringa como um romance. Em Louco Amor, Dini e Timm têm como temática principal não o amor, mas a obsessão – a atração cega e tóxica que o trio de personagens principais demonstra. Timm até demonstra na capa original a ideia que possuem de “triângulo amoroso” entre Harley, Coringa e Batman. Enquanto Harley cultiva seu louco romance, o Coringa mostra que sua paixão, sua devoção, é por seu arqui-inimigo. Já Bruce Wayne é obcecado por sua vida de vigilante – e até parece gostar de manipular seus inimigos e se pôr à prova dos desafios.
A estruturação da personalidade da Arlequina já começa pelo próprio nome: Arlequina, de Arlequim, a figura da Commedia dell’arte. Na Commedia dell’arte, os jogos cênicos e encenações são desenvolvidos a partir de personagens, representados por máscaras, que sempre possuem as mesmas características – são sátiras a comportamentos, a diferentes tipos de pessoas e classes sociais. O Arlecchino é justamente a máscara do criado ingênuo, de comportamento infantil, mas que possui certa malícia e inteligência que o fazem sair por cima dos que possuem mais dinheiro e/ou poder que ele. É uma figura romântica, sempre conduzido pelos desejos, seja pelo amor, pelo sexo ou pela fome. Faz todo sentido, por essa descrição, imaginar que o nome seja perfeito para a personagem. E na Commedia dell’arte existem figuras femininas, como a Colombina e a Isabella – que Dini e Timm recusam, por achar que explorar este outro prisma seja mais interessante para a personagem.
A Arlequina é imaginada como um personagem cômico pois Dini e Timm precisavam de um personagem que cumprisse esta função em The Animated Series. O Batman e seus vilões são personagens densos, mesmo com os criadores da série ajustando o tom e abordagem do universo do Morcego ainda havia um limite que não poderia ser ultrapassado para não descaracterizá-lo. E o Coringa, em especial, não poderia ser desenvolvido de forma simpática – não poderia ser usado como um palhaço – exatamente por toda problemática envolvendo o personagem. O Coringa, na época de Batman: The Animated Series, já havia deixado a abordagem mais inocente desenvolvida na Era de Prata e revisto como uma personificação do mal. Até o início da produção da série animada, algumas histórias importantes do personagem, que serviriam de base para seu reposicionamento, já haviam sido lançadas, tais como: A Vingança Quíntupla do Coringa, Cavaleiro das Trevas, Piada Mortal, Morte em Família e Batman de Tim Burton.
Na série, e em Louco Amor, portanto, Arlequina é responsável por completar uma estrutura de dupla cômica com o Coringa, exercendo função parecida com a do próprio Arlequim na Commedia dell’arte (que sempre está ligando os diferentes núcleos da história e interagindo com personagens mais brutos e violentos, como o Pantaleone e o Brighela). O casal também pode ser visto como a dupla clássica de palhaços, com Arlequina sendo o Augusto e Coringa sendo o Branco (ou seja, que tem a função principal de contrapor a loucura do Augusto e estabelecer a “escada” para sua dupla).
Olhar para a Arlequina sob esta perspectiva é muito importante para entender a razão de seu sucesso. Harley é uma personagem secundária, mas sua construção é baseada em personagens que detém o foco, a condução narrativa. E em Louco Amor Paul Dini brinca com esta ideia. Mesmo em uma história onde é a protagonista, Harley não começa no centro da ação. Nas primeiras páginas, durante toda a sequência de Gordon no consultório de dentista, Batman e Coringa são colocados em evidência. Para eles são reservados os maiores quadros, as entradas triunfais, a arte mais trabalhada… Enquanto Arlequina só é colocada como um apoio. Nem sua primeira aparição na HQ – na sua própria HQ – é destacada. Isto muda a seguir, quando começamos a conhecer mais sobre a personagem e seus dilemas.
Seu primeiro quadro de destaque aparecerá somente na décima página, sem seu característico uniforme de jester, quando surge com um provocante babydoll e cantando I Fell Pretty, música do primeiro ato de West Side Story. A escolha da música é interessante. Além de reforçar o gosto da dupla de vilões pelos clássicos do entretenimento, West Side Story reforça o olhar erótico sobre a obra. West Side Story é justamente uma modernização do já citado Romeu e Julieta, uma história de amor e sexo juvenil que se passa em Nova York (uma grande metrópole, assim como Gotham) e troca família rivais por gangues. Só depois de muitas páginas, quando Arlequina toma o controle de sua identidade, vemos um grande painel destinado a si – já com seu uniforme clássico e pseudônimo.
A partir deste ponto de virada, Arlequina assume a condução da trama. É quando Dini coloca a personagem no centro da ação, evidenciando ao público toda a capacidade de Harleen – que consegue superar, de uma vez só, o Batman e o Coringa. É quando conecta também os pontos que deixou no início da história – que mostram a influência da Arlequina nos planos do Palhaço. É também no desenvolvimento do desfecho que evidencia ao público a relação tóxica, de abuso e exploração, entre a Arlequina e o Coringa. Dini e Timm fazem questão de expôr a brutalidade na sequência de quadros que mostram Harleen sendo atirada do edifício. É a única vez na HQ que a violência deixa de ser cartunesca. Não há onomatopeias e o sangue é explícito.
Junto da narrativa inteligente de Dini, dando suporte para tudo que é proposto, há a arte de um sempre genial Bruce Timm. Usando de seu estilo de desenho inconfundível, com design inspirado diretamente nas animações do Superman produzidos pela Fleischer Studios na década de 40, Timm usa muitas retas e quadrados, mas deixa formas mais redondas e linhas curvilíneas para a Arlequina. Também acrescenta muitas sombras em seus desenhos, que contribuem para estabelecer a sensação de profundidade e fortalecem aspectos físicos ou psicológicos. Enquanto as sombras realçam o corpo de Harley (buscando o efeito erótico já comentado anteriormente), em Batman servem para aumentar a aura de mistério em torno do personagem. Já o Coringa ganha feições demoníacas e horripilantes, que o tornam ainda mais ameaçador.
Bruce Timm também sabe aproveitar muito bem seus quadros. Louco Amor é uma história curta, e o artista consegue mantê-la ágil e dinâmica mesmo passando muitas informações ao seu leitor, construindo sequências de quadro que possuem bastante fluidez. Um bom exemplo disso é a página onde o Coringa conta a história de sua infância, que faz Harley ir da gargalhada ao choro. Isto também ajuda nos momentos de humor, onde Timm constrói um bom tempo cômico para que as piadas funcionem – como na cena em que Harley está se consultando com seu próprio paciente. Existem muitas piadas silenciosas, inseridas entre os quadros, que pedem um pouco mais de atenção do espectador – algumas pedem uma revisita ao trabalho, pois fogem da primeira leitura.
Na sequência tensa em que Harley é atirada pelo Coringa do alto do esconderijo, uma singela e patética onomatopeia é inserida quando o Coringa larga sua arma no chão – um peixe-espada. Durante um dos sonhos de Harley, quando imagina sua vida com o Coringa, 2 coelhos aparecem enforcados no teto. São Perninha e Lilica, de Tiny Toons – um dos “rivais” de Batman: The Animated Series, que sempre derrotava o desenho do Morcego no Emmy Awards.
Em tempo, vale a pena assistir a adaptação de Louco Amor para As Novas Aventuras de Batman e Robin. Apesar de ter mudanças pontuais – como a retirada do erotismo e da violência mais gráfica – e um design diferente para o Coringa, ainda é extremamente fiel ao material de origem.
Enfim…
Batman: Louco Amor é um clássico do Homem-Morcego. Trazendo a estética e linguagem de Batman: The Animated Series para as HQs, Paul Dini e Bruce Timm se permitem explorar elementos que não podiam ser trabalhados na série animada para contar a história de origem definitiva da Arlequina.
Louco Amor oficializa uma das criações de personagem mais bem sucedidas da história recente dos quadrinhos. É nesta HQ que pode-se identificar algumas das características que farão de Harley Quinn um sucesso, um personagem carismático e que é utilizado para discutir temas importantes e pertinentes ao tempo presente. Talvez, olhando com olhos contemporâneos para Louco Amor, alguns leitores podem questionar a abordagem de Dini e Timm – e questionar, discutir, é sempre relevante e engrandecedor. Porém, é importante entender que é só graças aos elementos consolidados em sua história de origem que a Arlequina pôde desenvolver sua emancipação, uma evolução acompanhada pelo próprio público em seus mais de 25 anos de vida. E, talvez, voltar para os origens seja necessário em algum momento. Talvez a Arlequina precise, de tempos em tempos, voltar para seu “Pudinzinho” – exatamente para acompanharmos, uma vez mais, a jornada de uma mulher que compreende estar em um relacionamento tóxico.
A história da Arlequina continuará sendo atemporal – felizmente e infelizmente. E a personagem continuará saltitando pelo universo DC, lembrando que o amor próprio é o maior poder que podemos conquistar.