No último dia 3 de março, “Batman”, do diretor Matt Reeves, estreou no Brasil prometendo abordar facetas do Cavaleiro das Trevas, que até então seriam exclusividade das HQ’s, como o seu lado detetive, por exemplo. A obra que aborda o segundo ano de atuação do vigilante em Gotham City, mostra a sua batalha contra a máfia da cidade, o Charada e contra a corrupta polícia local, que ainda se mostra reticente em relação às suas ações.
O relacionamento do herói com o Tenente James Gordon (Jeffrey Wright em acertada escolha de elenco), ainda em consolidação é de grande relevância na interminável missão de vingança do herói. Selina Kyle (Zoë Kravtiz) e Oswald Cobblepot (Colin Farrel), respectivamente a Mulher-Gato e o Pinguim, também possuem importância no filme, assim como Alfred (Andy Serkis) que não pode faltar em qualquer adaptação sobre o homem-morcego.
E não há como não pensar em quais histórias do Batman o cineasta poderia ter se baseado para o desenvolvimento do filme, com o roteiro do próprio Matt Reeves com Mattson Tomlin e Peter Craig. O próprio diretor já revelou que “Batman: Ego” teve grande importância na construção desse novo Batman, agora interpretado por Robert Pattinson.
Porém, há uma obra em especial e imprescindível para retratar o personagem ainda iniciante e sendo colocado em constante dúvida: Batman: Ano Um, de Frank Miller e David Mazzucchelli.
Originalmente a trama foi lançada como um arco de quatro partes da revista “Batman” (edições 404 a 407) nos EUA, entre fevereiro e maio de 1987. A partir de setembro do mesmo ano, a editora Abril lançou a história nos quatro primeiros números da segunda série da revista “Batman”. A partir daí, a obra ganhou reedições em vários formatos tanto pela Abril quanto pela Panini.
Após estabelecer novos (e, porque não dizer definitivos) parâmetros para o Homem-Morcego com “O Cavaleiro das Trevas”, Miller mostra a história de dois homens em busca de redenção: enquanto Bruce Wayne retorna à Gotham depois de 12 anos para tentar liberta-la da corrupção e do crime, o tenente James Gordon se transfere para a mesma cidade, em busca de uma vida melhor para a sua família e tentando deixar erros do passado pra trás.
Gotham é um personagem à parte com grande relevância no decorrer da trama, pois é mostrada como um lugar sujo, seja metaforicamente, quando os poderosos aparecem em festas ou banquetes, e de forma literal, quando vemos a zona leste, deteriorada e praticamente abandonada pelas autoridades.
O ambiente muito lembra a deteriorada Nova York dos anos 70, quase falida e com os índices de criminalidade aumentando exponencialmente. E é nessa cidade que o jovem Wayne tenta se misturar à população à margem, tentando colocar seu treinamento em prática.
Entretanto, ele percebe que não está pronto, pois não inspira medo…ainda. Disfarçado, numa tentativa de proteger uma criança, prostituída por um gigolô, ele é atacado por várias prostitutas, e entre elas, Selina Kyle. Ferido e detido pela polícia, Bruce foge e já em sua mansão tem a clássica revelação do símbolo que deve utilizar para personificar o medo na mente dos criminosos, o morcego que invade o recinto quebrando uma vidraça.
Em paralelo, Gordon é apresentado à nata da corrupção policial da cidade: O detetive Flass e o comissário Loeb. O então tenente, que não compactua com os esquemas já estabelecidos, sente na pele em uma emboscada comandada por Flass, que logo em seguida leva o troco do próprio Gordon, estabelecendo que agora ele deve saber com quem está mexendo.
A atmosfera de um filme policial dos anos 70 (como “Serpico” e “Taxi Driver”), é um dos grandes méritos da HQ, aspecto esse realçado pelas cores de Richmond Lewis e pela arte de Mazzucchelli. O cenário é sujo e obscuro e os “heróis” são falhos e muito, muito humanos em seus objetivos e motivações. Batman agora é uma realidade tanto para o mundo do crime, polícia e para os cidadãos de Gotham. Mesmo ainda sendo um vigilante inexperiente, suas ações por muitas vezes teatrais e com técnicas ninjas, geram enorme impacto em toda a cidade.
A história mostra o desenvolvimento de dois personagens que construirão uma parceria que se não salvará, ao menos evitará muitos crimes e mortes na cidade: Batman e Jim Gordon. O então tenente não é mostrado apenas como aquele que liga um sinal luminoso ou que faz uma ligação de emergência no telefone vermelho, ele é um policial experiente que, além de ter tido treinamento militar, tem sagacidade inteligência de sobra.
Os personagens compartilham tanto da rejeição do crime organizado quanto da cúpula corrupta da polícia de Gotham (representada por Flass e Loeb) e suas histórias começarão a se cruzar justamente no momento em que os homens da lei receberão ordem para aumentarem o cerco sobre o vigilante.
Após uma noite de patrulha, onde impediu crimes e um acidente fatal, Batman, ferido e quase desarmado, acaba cercado pela polícia, em um prédio abandonado, que recebe inclusive uma carga explosiva. Nessa sequência, todo o seu treinamento é colocado à prova, pois além de conseguir fugir, ele despista a polícia utilizando morcegos como chamariz (cena que sofreu livre adaptação no filme “Batman Begins”, de Christopher Nolan).
Enquanto o Homem Morcego expõe os esquemas da polícia, a cúpula da polícia quer expor as falhas de Gordon, que tinha um caso extra conjugal com a detetive Sarah Essen. Ou seja, é uma trama extremamente adulta, atualizando de forma realista e dura o mito do personagem.
O herói já contava sigilosamente com o auxílio do assistente da promotoria, Harvey Dent, mas constatou precisar ter alguém de confiança na polícia, que seria o então tenente Gordon. A lendária dinâmica que viria a se criar entre os dois se diferencia e muito a de outro famoso (talvez o maior) detetive, Sherlock Holmes, e o seu contato na polícia, o Inspetor Lestrade que, raramente tinha suas capacidades valorizadas.
O mais importante no desfecho da história é a consolidação da relação entre os dois (sim, dois) protagonistas, quando a família do tenente é colocada em risco e o Batman ajuda a salva-los. Essa parceria será um dos pilares de toda carreira do Cavaleiro das Trevas, assim como sua relação com seu fiel mordomo Alfred Pennyworth e com os Robins (e depois com a bat-família).
A questão principal é Gordon se dar conta de que Gotham é uma cidade com uma estrutura tão podre, que em muitos casos, a polícia além de não ser suficiente, não conseguirá chegar nos locais certos para pegar as pessoas certas. Sem a colaboração do então tenente (e comissário no futuro), Batman teria enorme dificuldade para executar a sua missão.
Outro aspecto abordado, mais ao final da edição, é que com o surgimento do homem-morcego, que usa da imposição do medo e teatralidade, começariam também a surgir bandidos que tentariam expor suas loucuras ou obsessões de forma similar, podendo ou não ter sido inspirados no herói para assumir novas personas como vilões temáticos.
Um exemplo talvez seja o Charada do filme “Batman”, interpretado por Paul Dano, poderia vindo a público motivado pelo aparecimento do herói?
Esse arco, que viraria minissérie e depois ganharia ares de graphic novel em seus encadernados, é quase o storyboard de um filme. Do roteiro preciso de Miller, mostrando ações paralelas dos personagens, sem excessos, passando pela arte de Mazzuccelli, que oferece enquadramentos dignos de grandes diretores e a “iluminação” e a “fotografia” das cores de Lewis, tudo soa cinematográfico.
Um bônus é descobrir as referências a artistas que já passaram pelo personagem, agora emprestando seus nomes à algumas regiões de Gotham, e uma lanchonete, com nome de um grande artista americano, especialista em retratar a solidão, que na HQ faz uma ligação direta com os personagens que vão até lá para um café.
As críticas feitas após as sessões de “Batman”, para a imprensa, foram positivas em relação ao clima áspero, sujo e realista do filme, além do lado detetivesco do personagem, finalmente retratado no cinema. Muito disso está presente em “Batman: Ano Um”, que é, uma história de origem com narrativa fora do convencional que, como muitos filmes, tem um final aberto em relação ao que está por vir ou para as famosas continuações.
Mostra também aspectos psicológicos que definem os personagens, como o Bruce Wayne atormentado e em busca constante de vingança pela morte dos pais e um tenente James Gordon angustiado e preocupado com o bem-estar da sua família e da cidade. Com os dois personagens lutando contra um inimigo comum, que no caso da HQ, é a sujeira institucional e criminosa que impera em Gotham City.
É, sem sombra de dúvida, imprescindível para entender o Homem Morcego e para dar início a qualquer projeto, em qualquer mídia, que o tenha como protagonista.