Os fãs ficaram extremamente preocupados com a adaptação de Preacher, a obra está na seleta lista de títulos inadaptáveis. O receio nem recaia sobre as mudanças na transposição para as telas. Basta algumas páginas para sacar que Preacher caberia perfeitamente em uma série. O clima pé na estrada do quadrinho é por si só cinematográfico. O fato complicador sempre foi o conteúdo polêmico. Os criadores Garth Ennis e Steve Dillon conceberam o santo graal da blasfêmia em formato de quadrinhos. Recheado de palavrões, sangue, sexo e degenerados de toda espécie era muito difícil imaginar a história chegando ao grande público sem ser mutilada pela censura. Mas verdade seja dita, a série consegue ser tão visceral e bizarra quanto sua contraparte.
A aclamada série da linha Vertigo narra a história de Jesse Custer, reverendo de uma cidadezinha do interior do Texas que durante uma crise de fé acaba tendo contato com a entidade Gênesis, fruto da união de um anjo com um demônio. Ao se fundir com a criatura, Custer passa a ter contato direto com os mistérios da criação e ao descobrir a verdade sobre Deus ele parte em uma jornada para encontrar pessoalmente o criador e tirar satisfações sobre o destino da humanidade. Em meio a toda bagunça, Jessé reencontra Tulipa, uma antiga namorada e Cassidy, um excêntrico vampiro irlandês.
A adaptação de Preacher também é uma série esquisita, mas de um jeito diferente. Do tipo que quando me perguntam o que achei não sei bem o que dizer. Não dá pra recomendar sem algumas ressalvas, eu nem saberia dizer se faz sentido para quem nunca ouviu falar da série na qual ela se baseia. Para quem já é fã do material como eu, posso dizer que o resultado pode surpreender, mas só por que tenho certeza que ninguém imaginava a obra de Ennis ganhando as telas sem ser descaracterizada.
Bom, vamos com calma, antes que você me deixe aqui falando sozinho vou tentar ser mais claro. Em primeiro lugar preciso confessar: Eu quero gostar de Preacher. Ele é um cara gente boa, do tipo esquisito, mas na medida pra atiçar a nossa curiosidade. É aquele amigo estranho que quando estamos com ele nos perguntamos, mas por que diabos sou amigo desse maluco? Até que de repente acontece alguma parada do tipo uouuu!!! Então a gente lembra o porquê deixamos ele por perto. Porém preciso ser franco aqui, na maior parte do tempo esse maluco é um tanto quanto desnecessário, seja para quem o conhece de outras paradas ou pra quem nunca ouviu falar do sujeito.
Para quem já está familiarizado vai sacar de cara a enrolação do figura. Dez episódios tentando explicar onde esses personagens estavam antes dos acontecimentos da HQ para no fim ficarmos com a impressão de que não fez diferença nenhuma saber disso. Esse prequel muda algumas coisas na relação entre o trio principal, de cara deixa pequenas pistas antecipando coisas que só se esclarecem na últimas edições dos quadrinhos. Essas mudanças, no entanto, são mínimas e no fundo não acrescentam nada de relevante ao material original. A melhor coisa desse material inédito são os personagens novos. A maioria tem arcos divertidos de acompanhar como a relação esquisita entre Donnie, braço direito de Odin Quincannon, e sua esposa Betsy. Os dilemas da rotina da dona de casa dedicada Emily e sua peculiar friendzone com o prefeito. Para termos uma noção do quanto Annville é interessante até os mascotes do time da cidade têm seu arco. Infelizmente todas essas tramas não são aproveitadas como deveriam e no final todas essas histórias são mandadas literalmente a merda.
Bom para quem nunca ouviu falar desse degenerado as coisas se complicam ainda mais. Tente acompanhar a equação: Padre em crise+vampiro+assassina de aluguel+agentes do governo+anjos+empresário inescrupuloso+cowboy+Cara-de-Cu+Deus= Mas puta que pariu o que diabos está acontecendo aqui??? A dificuldade em acompanhar como a série passa de um drama a uma esquete bizarra de Monty Python é compreensível. Complica para isso o fato da própria produção não ter certeza de que tom adotar. Em alguns momentos é extremamente pesada e sombria, como na briga de Jesse com Donnie no banheiro. Em outras trata de coisas pesadas com um sarcasmo cruel, como na morte de uma das garotas de programa. Ok, os quadrinhos também faziam essa salada e alternavam momentos assim o tempo inteiro, o diferencial era a habilidade rara de Garth Ennis em dar veracidade às coisas mais absurdas como misturar Jesus e Marquês de Sade na mesma pessoa. E a série acerta em cheio quando segue os caminhos do mestre e opta pelo sarcasmo, maior qualidade da obra de Ennis, que brilhava ao mirar sua metralhadora de deboche literalmente para deus e o mundo. A briga de Jesse, uma dupla de anjos versus outro ser celestial, que mais parece um Exterminador, é um dos pontos altos da primeira temporada e deveria servir de régua para os produtores guiarem o tom do programa.
Agora você deve estar pensando por que caralhos perderia meu tempo com esse escroto. Bom amigo, se você chegou até aqui acho que posso te chamar assim, vou precisar de seu voto de confiança, vai valer a pena. Em termos de produção a série sabe o que está fazendo. Começando pela fotografia maravilhosa capaz de encontrar beleza até no cu do mundo. Alternando entre tons vivos e coloridos durante o dia que dão aquela cara de cidadezinha do interior, faz tudo parecer bonito e limpinho contrastando com toda a esquisitice que se esconde por trás da aparente normalidade da cidade. A noite as cores são engolidas pelos tons cinzas e depressivos ampliando a sensação de que é hora da perversidade sair debaixo do tapete. A trilha sonora é um personagem a mais na trama, sempre dialogando com as cenas e as situações. Fora isso não é todo dia que ouvimos Cash e Willie Nelson em uma série de TV.
Agora chega a hora de falar da cereja do bolo, o elenco. Aqui está um raro caso em que não dá pra reclamar das escolhas da produção ( desculpe haters não vai ser dessa vez). Dominic Cooper, Ruth Nega e Joseph Gilgun estão perfeitos como Jesse, Tulipa e Cassidy respectivamente. Os três nitidamente compraram a história e toda sua maluquice e estão totalmente entregues aos personagens desde primeiro minuto. A primeira aparição de Gilgun no papel do vampiro Irlandês é insana, envolve uma briga contra caçadores de vampiros em um avião e termina com um deles servindo de filtro de sangue para matar a sede da criatura. O ator entrega um Cassidy escarrado das páginas dos quadrinhos. A aparência permanentemente chapada do personagem parece esconder a verdadeira natureza do bebedor de sangue, em meio aos trejeitos e o sotaque maluco, o ator consegue deixar escapar pequenas pistas de que há muito mais ali dentro do que só a completa falta de interesse pelo mundo. Jesse é a personificação do dilema que vive, sempre entre a cruz e a espada. Essa primeira temporada exige bastante de Cooper que transparece a luta interna de Jesse contra sua própria natureza e a dificuldade que ele tem de aceitar a si mesmo (o ator acabou queimando a língua de muita gente, que o achavam almofadinha demais para o papel). A Tulipa de Ruth Nega é exatamente como sua contraparte nas HQs, resumindo um mulherão da porra, dura, briguenta e porra louca. Seu único ponto fraco é seu amor, parece clichê, mas Ruth Nega segura muito bem a peteca e faz com que mesmo nas cenas em que a personagem abaixa a guarda, a atriz não nos deixa esquecer que ela ainda é capaz de fazer uma bazuca com latinhas de comida em conserva. Os elogios ao elenco principal podem ser estendidos a praticamente todo elenco. Com destaque para Jackie Earle Haley que aparece como o inescrupuloso Odin Quincannon e rende momentos hilários como a reunião com um grupo de ecologistas. Outros que aparecem muito bem são a dupla Anatol Yusef e Tom Brooke, que interpretam uma dupla de anjos responsáveis por cuidar da entidade Gênesis. Os dois atores em cena tem um jeito estranho e engraçado de se comportar e a todo tempo ficamos com a impressão que apesar da aparência ali não são humanos, mas alguma coisa tentando se passar por gente.
Acho que a esta altura você deve estar achando que estou te enrolando certo? Certo, preciso confessar: Sim, estou tentando te empurrar uma parada que nem eu sei se é tudo isso. E porque faço isso? Vamos lá, olhe nos olhos desse carinha. Diz para mim se ele não tem potencial? Hoje ele pode ser só um doidinho confuso, mas ele vai chegar lá, eu sinto que vai. Só de ver uma série que apesar dos erros manteve o espírito de Preacher ganhar as telas, já temos um mérito aí. Ver uma obra controversa como está sendo representada por ótimos atores e com uma produção dessas é do caralho. O maior erro de toda adaptação não são as mudanças, estas são necessárias afinal adaptar exige modificar. O erro estar em negligenciar e desrespeitar o espírito do material original. Em não entender sua alma e achar que sabe fazer melhor. Via de regra os produtores engravatadinhos são um bando de escrotos que deveriam manter suas mãos gananciosas longe de histórias com culhões. Mas este obviamente não é o caso aqui, pois Evan Goldberg, Seth Rogen e Sam Caitlin pegaram o espírito da coisa, eles não são Garth Ennis e Steve Dillon, mas pegaram o jeito. Afinal como diria Cassidy;
Então é isso, espero ver vocês na próxima temporada.