Muitos podem até duvidar, mas Pacificador tem sim algo a dizer

    Com o último episódio já disponível na HBO Max, chegou o momento de olhar a série do Pacificador como um todo e entender quais são as intenções desse amalgama caótico gerado pela dupla James Gunn e John Cena que, apesar de parecer bobo em uma primeira olhada, acaba por ser uma versão mais contida e experimental da desmistificação dos símbolos estadunidenses iniciados em O Esquadrão Suicida. 

    No segundo filme da equipe de desajustados desesperados por redenção, o foco do discurso estava na crítica ao imperialismo estadunidense nos países da América Latina. A produção mostra como o país interfere na política local para atingir seus próprios interesses, e estão dispostos a usarem de todos os métodos e vias necessárias para se sobressair como os heróis ao final do dia. Sendo a figura do Pacificador um dos principais exemplo da hipocrisia dos EUA, algo que o torna um inevitável antagonista no terceiro ato e o protagonista ideal para uma produção solo. 

    Contudo, o caminho que a produção decide percorrer em muito difere das mostradas no filme, mesmo que ela siga uma estrutura de invasão alienígena similar a anterior. Ao invés de cutucar com vara curta a influência e ações de todo um império, a série decide quebrar um de seus mais ovacionados símbolos, a do “herói americano”.

    “Peacemaker… What a joke!” 

    Logo em sua estreia, um dos elementos mais marcantes foi a tão comentada abertura “não convencional” da produção, que coloca seus principais personagens em um número musical sincronizado (e perfeito para o TikTok). Apesar de parecer gratuito, a intro conversa com a proposta que será abordada no arco de seu protagonista. 

    Desde os primeiros materiais promocionais, Pacificador sempre foi descrito como um “Capitão América Babaca”, um devoto aos ideais nacionalistas estadunidenses a tal ponto que não enxerga, ou se recusa a ver a própria farsa. Um mercenário que almeja alcançar a paz a todo custo, “não importa quantos homens, mulheres e crianças (…) precise matar para consegui- lá”. 

    A produção escolhe desconstruir essa figura através da ridicularização, mostrando os absurdos das convicções do personagem. Alguém que acredita que a violência é a única solução para os males do mundo, possuindo um grande apreço na demonstração de virilidade, mas ainda assim, possui dificuldade em demostrar suas fragilidades para seus aliados e usa de comentários de baixo calão como mecanismo de autodefesa. 

    Todo seu arco chega ao ápice em seu embate final contra o Dragão Branco, um líder supremacista e vilão aposentado que também é o pai de Chris, o Pacificador. Autor de diversas torturas físicas e psicológicas em seu próprio filho, que o levaram a ter sua visão distorcida de justiça. Existindo na trama não como uma justificativa, mas sim para discutir o papel de figuras paternas na perpetuação da masculinidade tóxica e como ela ecoa na vida de um indivíduo, que nesse caso é marcada por uma relação desafetuosa e permanente em torno da violência. 

    Toda sua a jornada percorrida por Chris o leva a questionar sua criação e os valores que o trouxeram até o presente momento. Diluindo o personagem até chegar ao seu cerne e os traumas que ofuscaram sua visão, achando que os fins justificam qualquer meio necessário. É um doloroso processo de auto conhecimento, que ao final o faz, não encontrar uma cura para todas as suas questões internas, mas sim ser vulnerável o bastante para permitir a entrada de um grupo de apoio sólido em sua vida.

    Em um momento atual de adaptações de gibis onde a desconstrução do heroísmo através da violência se tornou clichê ao ponto de tal mecanismo ser apenas usado para chocar a audiência, a existência de um personagem como o Pacificador acaba por se tornar um contra argumento direcionado aos conhecidos “nerdolas”, que encontram em figuras similares um modelo para propagar seus discursos de ódio. 

    11th Street Kids 

    Apesar de ser a grande estrela da produção, o Pacificador não é o único personagem usado por Gunn na sua quebra de paradigmas, tendo seus coadjuvantes um papel fundamental na crítica aqui apresentada.

    Uma herança vinda diretamente do cinema de ação para o gênero de super-heróis é o enaltecimento de corpos esculpidos como esculturas gregas, com atores precisando passar por treinamentos intensos para vestirem seus trajes heroicos. Não existindo espaço para pessoas gordas nessas produções, e quando aparecem, são ridicularizadas ou permanecem em segundo plano.

    Isso leva para a importância que o co-protagonismo que Leota Adebayo (Danielle Brooks), uma mulher preta, lésbica e gorda, possui durante toda a produção. Uma personagem que inicialmente se mostra alheia a missão e possuindo uma visão mais empática em meio ao apetite feroz por matança de seus companheiros. Até que gradativamente encontra em si a confiança necessária e passa não só ser um agente ativo por trás dos holofotes, como também recebendo o status de cavalaria nas sequências de ação.

    Outro personagem que segue a mesma linha é John Economos (Steve Agee) que foge do estereótipo do “nerd da cadeira”. Ainda sendo um alivio cômico, mas aos poucos conquistando seu espaço e ficando em pé de igualdade com os demais membros da equipe. Sendo de extrema importância em momentos decisivos da missão e, juntamente com Pacificador e Vigilante, é um dos que mais coleciona números de corpos durante a série, tanto humanos, como de gorilas.   

    Em relação a representatividade, a série comete certos tropeços, em especial no male gaze bastante presente nos episódios iniciais. Entretanto, com o desenvolver a trama é visível a existência de uma preocupação em não dá o protagonismo unicamente aos personagens padronizados, permitindo que esses personagens se tornem seres com identidade própria. Não tendo suas vidas moldadas em prol do protagonista, como é o caso Harcourt (Jennifer Holland), que não é limitada a imagem de um interesse amoroso.

    Mesmo em meio a erros, tais detalhes acabam se sobressaindo, muito pela falta que narrativas similares fazem no gênero de super-heróis. Pegando algo que por muitos anos foi restrito para um único tipo de audiência e permitindo que aqueles pertencentes a grupos minoritários tenham seu devido espaço para brilhar. 

    Do ya really wanna taste it?

    Pacificador acaba sendo um fruto do surto criativo atual existente nas produções televisivas da DC. Onde personagens mais desconhecidos até pelos próprios fãs do universo, ganham espaço para se reinventar e mostrarem seu real potencial. Não se prendendo a amarras comumente vistas em entidades de maior grau hierárquico dentro da editora.

    Como dito, o humor pastelão da série pode não ser do agrado de muitos, mas é bem utilizado para tecer comentários sobre o atual cenário de cultura pop. Cutucando com gosto uma certa comunidade bastante ativa das redes sociais que adora usar termos como “lacração” e enaltecer figuras viris oriundas de produções passadas. Podendo enganar muito a princípio, mas tendo um discurso mais potente e bem direcionado do que muitos acreditam.

    Marcos Vinícius
    Marcos Vinícius
    Olá! Meu nome é Marcos e tenho um grande amor pelo jornalismo. Possuo um podcast, o Sabor de Ambrosia, e sou um grande fã da DC desde que me entendo por gente. Escrevo de tudo um pouco e, espero que gostem do que tenho pra falar.

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