Agora que já vimos um pouco mais sobre a criação de A Piada Mortal -Leia mais aqui-, é chegada a hora de partir para a obra final. É importante ressaltar que não há a menor intenção de definir e nem de optar por leituras e por interpretações, taxando-as como certas ou erradas, afinal, o maior charme da graphic novel está justamente em sua ambiguidade e na riqueza de possibilidades que ela dá a seu leitor. Ressaltar as vontades do autor ou do desenhista também não exclui a opinião de nós, leitores, pois uma obra de arte, assim que é feita, não pertence apenas ao artista. Ela vira algo novo, algo entre. Aqui a intenção não é fazer uma resenha, pois acredito que a avaliação final desta hq seja muito mais interessante na mente de cada um dos seus leitores, mas sim procurar desvendar os segredos, a poesia e a filosofia contidos em cada quadro de A Piada Mortal. Essa leitura se tornará mais agradável acompanhada de uma edição de A Piada Mortal colorizada por Brian Bolland. e será dividida em 2 partes que a leitura não se torne cansativa 😀
Então, sem mais delongas: Smile! E saúde ao crime!
Com exceção da primeira versão francesa, alguns relançamentos internacionais, da edição Noir e de encadernados com outras histórias, todas as edições de A Piada Mortal possuem a capa desenhada por Brian Bolland. Não é só pela bela arte ter se tornado um clássico, a capa da Piada Mortal é parte importante de seu conceito, além de apresentar um foreshadowing do destino de Bárbara (Foreshadowing é um recurso narrativo e estético que nos apresenta algo que, futuramente, irá acontecer. Como quando assistimos um filme de terror e vemos uma faca sobre a mesa, e é justamente ela que o assassino usará em uma cena de perseguição). Bolland consegue criar um desenho fortemente dialético, que nos mostra o Coringa como uma figura misteriosa ao mesmo tempo que nos aproxima dele. Somos alvos da violência, mas também somos passivos a ela, e nada podemos fazer além de assistir aos brutais acontecimentos que virão. Da mesma forma que faz com Gordon, o Coringa estuda o leitor e sua suposta sanidade e nos convida para fazermos o mesmo com os personagens apresentados ao longo das 46 páginas. Colocar a máquina fotográfica em primeiro plano, nas mãos de um personagem de quadrinhos, é destacar a importância imagética que estas duas artes possuem, e já conduzir o olhar do leitor para que ele tenha atenção nas camadas criadas pelos desenhos da Piada Mortal. Se atentarmos ao fato de que a máquina fotográfica, uma criadora de imagens, oculta metade da face do vilão, percebemos que parte de si é reflexo daquele que está no alvo de sua lente, seja Bárbara ou seja o leitor. O Coringa é formado pela violência e pelo caos da vida urbana, os mesmos elementos que utiliza como ataque e defesa em uma arma nome “Witz“, piada em alemão. Se, agora, o Coringa está atrás da máquina é porque em algum momento pode ter estado á sua frente. Na lente ainda podemos ver a assinatura de Brian Bolland e as inscrições “Witzmacher” e “Kalawartz“, algo que poderia ser traduzido como “criador de piadas” ou “Coringa” em alemão e polonês, respectivamente.
Parte da potência da Piada Mortal se dá pela escolha de Alan Moore, que de maneira simples e genial, quis contar apenas mais uma história do Batman e do Coringa. Moore busca mostrar estes personagens, um agente da ordem e um agente do caos, através da força do mito que são. Os personagens são fortes e representativos o suficiente para agirem como alegorias de si mesmos. Por isto A Piada Mortal é cíclica, ela é contínua e eterna como os dilemas que divergem e espelham esses personagens e tudo que eles representam. Ela é a história do Batman e do Coringa que sintetiza todas as histórias do Batman e do Coringa, com a oportunidade rara de termos acesso aos pontos de vista do Príncipe Palhaço do Crime e quem ele, talvez, tenha sido um dia. Este possivelmente é um dos motivos por qual Moore não gosta de A Piada Mortal, afirmando que “não há nada de interessante nela”. Moore sabe que optou pelo caminho óbvio para contar a história, porém o que Moore parece não perceber é que ninguém teve essa ideia tão óbvia de explorar e comparar esses dois personagens desta forma, e usando de ambiguidade e abstração para criar lacunas que provocassem o leitor a níveis profundos de questionamento.
É por isto que o primeiro e o último quadro da história são iguais: uma poça. Uma figura abstrata, aberta a leituras e que é misteriosa, afinal, não podemos ver a profundidade de uma poça com clareza. Quão funda ela é? Quão rasa ela é? A construção das páginas a que estes quadros fazem parte é silenciosa e gradual, pra induzir o leitor a uma sensação de suspense e suspensão. É assim que Moore constrói uma história mítica e que se torna atemporal dentro da cronologia do Batman, e une as duas pontas, início e fim, como um círculo, igual aos que veremos na poça. A Piada Mortal é um dos trabalhos em quadrinhos mais matemáticos já criados. Nenhum dos quadros é desperdiçado. As diferentes passagens de tempo que veremos na história são muito bem mostradas para o leitor. Por isto que suas repetições merecem uma atenção maior, afinal, se estão ali é porque desejam comunicar algo e construir sensações.
Assim acompanhamos, em um dia de chuva, a chegada de Batman no Asilo Arkham. Atravessando os portões, Batman encontra Comissário Gordon e, em passos de emergência, entram dentro da já familiar instituição. Na recepção, na mesa da secretária, uma placa: “você não precisa ser louco para trabalhar aqui… mas isso ajuda!”. O que dizer, então, do homen que entra por boa vontade neste lugar, enfrentando a loucura de Gotham dia após dia? A vontade de Moore é que a secretária estivesse segurando um exemplar do livro The Comedians, de Graham Greene, que Bolland acabou excluindo de sua arte. Continuamos acompanhando o mergulho de Batman e Gordon no Arkham passando pelas celas dos internos, com o nome real dos vilões, não suas alcunhas. Encontramos Harvey Dent, o Duas-Caras, e suas mãos de diferentes cores nas grades da porta, que já nos induzem a pensar na questão da dualidade. Assim, chegamos até a cela do detento de nome desconhecido, número 0801.
A página 3 é a primeira página da graphic novel que quebra a organização de 9 quadrinhos. Nela, vemos o Batman entrando na cela/quarto, envolto em sombras, enquanto as mãos pálidas do Coringa organizam cartas. Vemos o Batman puxando uma cadeira e o Coringa largando sua carta, criando o som característico de uma ponta de carta sofrendo pressão. “Fnap“. Esse é o primeiro som que temos na história. Também aparece a primeira caixa de diálogos. “Tinham dois caras num hospício…” é o começo da piada do Coringa, contada no final da graphic novel. Aqui, ela reforça os sentidos e significados que poderemos ter mais á frente. A luz sobre a mesa cria um foco, que não revela a face nem do Batman e nem do Coringa, deixando-os ocultos, distantes um do outro. Batman conta sua preocupação, seu medo de que a relação com o Coringa se torne irreversível, chegue ao limite, resultando na morte de um dos dois. A revelação de Batman não é respondida pelo Coringa, que continua movimentando suas cartas. É quando descobrimos que não é o verdadeiro Coringa, e sim um impostor. O primeiro quadro onde o verdadeiro Coringa aparece mostra sua mão. Isso não é apenas para fortalecer o belo desenho de Brian Bolland que revelará o rosto do personagem na mesma página, isso nos mostra que o Coringa já está jogando seu jogo, e que as cartas que movimenta são diferentes das que seu impostor utiliza. O próprio “Coringa” que utiliza para fugir do Arkham, aliás, mostra que o Coringa é um jogador, não uma carta. Nesta página acompanhamos a negociação da compra do circo. É também nela que Moore/Bolland nos apresentam pela primeira vez seu recurso de repetição e coincidência para ligar os quadros e os diferentes tempos e acontecimentos. Na verdade, a primeira vez que fazem isso na graphic novel é justamente na primeira imagem, a poça, mas o leitor só descobrirá isso após acabar a leitura. É nesta página que o leitor entenderá a linguagem proposta e conseguirá criar as conexões, que a dupla consegue fazer de forma muito clara e fluída. No primeiro quadro, o dono do circo responde a pergunta de Batman. No último, temos a primeira passagem de tempo.
Já falamos da colorização das versões de John Higgins e Bolland. Nos flashbacks é que podemos ver mais claramente as diferenças entre elas. Enquanto que as cores de Higgins parecem misturar mais passado e presente, confundindo as lembranças com devaneios e usando tons que beiram o alucinógeno, as cores de Bolland escolhem uma direta comunicação em preto e branco, que destaca as linhas temporais, e colore elementos para chamar a atenção do leitor e aumentar a importância do que é visto. As memórias, com o passar do tempo, vão ficando mais coloridas. É como se a vida cotidiana e realista dessnhadas no preto-e-branco de Bolland, gradualmente, se transformasse na loucura teatral que é o mundo dos herois e vilões fantasiados. Nesta primeira memória, Moore/Bolland constroem um ambiente mundano e claustrofóbico, facilmente reconhecido como uma moradia vítima da injustiça urbana. Um retrato irreconhecível na estante. Seriam os pais deste homem? Bolland pinta, com um amarelo fraco, a lâmpada, fios e o que parecem ser tentáculos de polvo, em cima da mesa. Um casal pobre, beirando a miséria, teria uma iguaria tão cara no jantar? Esse pode ser apenas uma maneira sutil de Bolland mostrar que as memórias são confusas. Há loucura e incerteza aqui, escondida nas lembranças do Coringa. O próprio personagem revelará ao leitor que suas memórias são inconsistentes e pouco confiáveis mais tarde. No fim de sua lembrança, o personagem terminará dando a mão a si mesmo, frente ao Palhaço Risonho do parque de diversões. É um triplo vislumbre de diferentes imagens: o homem que supostamente era, o homem que supostamente é e a imagem do que representa. O palhaço. Ou, como na capa da graphic novel, o “Witzmacher”. A maior luta do Coringa não é com o Batman, mas com a construção de imagens, com o entendimento do que é a realidade e o que é uma representação dela. Abaixo do palhaço, a inscrição “coloque uma moeda na abertura”. Ao que parece, para este palhaço, dinheiro também é uma questão.
Voltando ao presente, o Coringa encerra sua negociação com o proprietário usando sua toxina e colocando-o em um transe profundo. Ele ficará assim o restante da história, montado no elefante cor-de-rosa, um símbolo de delírio e alucinação. Vemos Batman na Batcaverna, com a carta do Coringa. A preocupação de Moore era criar uma história que homenageasse o melhor do cânone dos personagens de Batman. Aproveitando os efeitos de Crise nas Inifinitas Terras e a união de todos os anos de história da DC Comics, Moore coloca diversas referências na história evidenciando que ela é ficcional, de fato, e dando espaço para que ela agisse como uma história atemporal e épica. Isso é visto no trato que Moore/Bolland tiveram com o Batmóvel na primeira página (e que irá retornar mais tarde) e agora, também, com a Batcaverna. A foto da Batfamília, com direito até a Bat-Mite e Bat-Cão, está assinada pelo próprio Bob Kane. As fotos do Coringa são de diferentes retratos do Palhaço ao longo dos anos. Hoje em dia é mais fácil ver essa mistura de épocas e de traços nas histórias em quadrinhos, mas na época não. Bruce conversa com Alfred sobre o quanto não conhece o Coringa. Isso reforça a ideia de distanciamento entre os dois e se provará, mais tarde, como um engano. A página encerra com uma fala onde a palavra HATE está em destaque. Infelizmente isso se perde na tradução brasileira. A próxima pagina começará com uma fala de Gordon, também com o mesmo HATE pronunciado por Bruce.
Com uma página apenas, Moore/Bolland constroem uma rápida cena cotidiana e que revela a relação de pai e filha. Ela é potente o suficiente para aumentar o peso dos acontecimentos a seguir. Os jornais e as lembranças de Gordon complementam as fotos que Bruce possui na Bat-caverna e em seu arquivo sobre o Coringa, revirando no mito do Batman ao longo dos anos. Quando Bárbara abre a porta, de maneira bem surpreendente e rápida, tanto para leitor como para os próprios Gordon, acompanhamos a sequência icônica e que marcará a história do personagem para sempre. O amarelo da blusa, uma cor de natureza alegre e cheia de vitalidade, reforça a violência gráfica do vermelho do sangue. Moore usa uma composição parecida com o broche do Comediante, em Watchmen. O broche, a figura do Smile, constrói de forma dialética o encontro do riso com a violência. Aqui temos o próprio Coringa, que já traz o embate entre estas forças e que, nesta cena em especial, está vestido de turista, com roupas havaianas. A bebida que o Coringa bebe se chama “Plaisant Farceur”, ou Coringa Agradável. A sonoridade, em inglês, soa como “pleasant forcer”. Esse contraste, aliado a seu contexto, dá tons perversos para a cena. Acompanhamos o Coringa desabotoando a camisa de Bárbara, a agora ex-batgirl indaga ao Príncipe Palhaço o por quê deste ataque. Logo depois, veremos a resposta do vilão e um novo flashback:
Bárbara: P-por… por que você está… f-fazendo isso?
Coringa: Pra provar uma coisa. Que o crime compensa.
Homem jovem: Sabem… Tenho responsabilidades como marido e pai! Quer dizer… eu… bem… eu não estaria fazendo este tipo de coisa se… se não fosse necessário.
Aqui vemos a diferença entre o Coringa e quem ele já pode ter sido um dia. Se hoje o Coringa comete um ato sádico sem nenhuma justificativa aparentemente racional, um dia, esse homem pode ter tido uma moral que só o levaria a cometer crimes se houvesse sentido lógico e emocional. O monstro que fala com convicção, em outro tempo, já foi um homem inseguro e gaguejante, congelado em frente a homens perversos e vítima do acaso e da tragédia. Assim como Bárbara Gordon e assim como Bruce Wayne. Continuando a construção do flashback anterior, Bolland vai nos introduzindo elementos, agora em vermelhos mais vivos. Ao ser apresentado ao capacete do Capuz Vermelho o homem pergunta como conseguirá enxergar, e ouve que ele é feito com vidros espelhados (lentes infravermelhas, na versão brasileira). Novamente, o tema da imagem é evocado.
No hospital, a tragédia de Bárbara é oficializada pelo médico: ela nunca mais poderá andar. Bullock conta os detalhes do ataque do Coringa para Batman. No parque de diversões, Gordon é torturado pelos soldados do Coringa, anões batizados no script de Moore como Huguinho, Zezinho e Luisinho. De forma bruta, ele é levado na coleira através da propriedade, e é cercado pelo exército de figuras marginalizadas do show de horrores do Coringa. Gordon, confuso, é jogado aos pés de uma pilha imensa de bonecos.
Gordon: Uuuugh! Alguém… me diga o que estou… fazendo aqui…
Coringa: Ora, ora… Você está fazendo o que qualquer homem são, na sua situação, faria…
Coringa: …Está ficando louco!
Vemos o Coringa em um trono que, na realidade, é um waltzer. Waltzer é uma espécie de carrinho de bate-bate, mas que tem a forma de uma plataforma e que gira de forma independente e aleatória, de acordo com o peso de seu piloto. O Coringa sai de seu trono para falar com Gordon sobre a relação entre passado, lembranças e loucura, enquanto Huguinho, Zezinho e Luisinho prendem Gordon no trem-fantasma. Como já visto na capa, em A Piada Mortal os personagens se espelham. Quando se dirigem para o outro, na verdade, estão dirigindo a si mesmos. Ao aconselhar Gordon a enlouquecer, o Coringa parece relembrar a si mesmo a importância de apelar para a loucura como saída de emergência. Se o homem precisa abandonar as lembranças e a razão, e vimos na graphic novel que o Coringa não faz isso, então ele não é de todo louco. E se o personagem se coloca na tentativa de enlouquecer para que a dor provocada pelo passado seja apagada, ainda é possível afirmar que existe razão e lógica em seus atos. Nesta página, temos uma transição que cria ecos em diferentes camadas. A porta do trem-fantasma, que representa a saída de emergência que o Coringa cita anteriormente, liga com a face do vilão no segundo quadro da página e com o flashback que virá. A saída que o Coringa cita foi ter se tornado o palhaço de cara pálida e cabelos verdes, porém, esta porta também representa o próprio passado. Estas portas da loucura são a saída, mas também a própria entrada para a dor.
Esse é o fim da primeira parte do nosso olhar sobre as páginas de A Piada Mortal. Na próxima parte analisaremos a partir deste ponto para poder chegar até aos famosos finais da graphic novel, que continuam sendo discutidos hoje, após 30 anos de sua publicação.
Há algo nestas primeiras páginas que não citamos aqui? O que você acha da colorização de Brian Bolland? Deixe aqui nos comentários sua opinião!