Depois de ser o grande ponto acima da curva no filme “Esquadrão Suicida”, de 2016, a Arlequina de Margot Robbie retorna ao universo DC em uma jornada pessoal de emancipação. A atriz, agora também sentando na cadeira de produtora, decide explorar todo o potencial de sua personagem e trazer consigo o primeiro filme de uma equipe feminina para o universo de super heróis.
Quando conhecemos a Harley pela primeira vez, somos apresentados a uma mulher vivendo em um relacionamento abusivo e sendo mostrada como alguém em posição de submissão pelo seu amado. Ela não consegue se ver longe do seu “pudinzinho”, mas, ainda assim, se mostra uma pessoa forte e com uma personalidade encantadora, e acaba roubando a atenção do grande púbico, tendo agora a oportunidade de ser a estrela de sua própria história, podendo explorar o seu máximo sem ser resumida a um romance mal interpretado por alguns.
O filme começa em um momento de catarse para Harley, o seu relacionamento com o Coringa chegou a um fim definitivo e ela precisa agora se reerguer e mostrar para o mundo, e para sí mesma, que não deve ser definida como um simples acessório na mão de alguém. Porém, estamos falando de uma anti-heroína caótica com o seu jeito único de ver o mundo e todos aqueles que o cercam, então, a narrativa precisa se curvar a sua narradora, mesmo ela não sendo a mais confiável para esse trabalho.
Harley ganha o seu palco e pretende contar a história a sua maneira, mesmo se for preciso contá-la de forma desconjuntada. Caso a personagem esqueça alguma informação importante, ela será mostrada quando lhe convém. Essa imersão nos pensamentos da protagonista faz com que o filme ganhe um charme especial, se fosse contado de uma outra forma mais tradicional, provavelmente não teria o mesmo impacto. Aqui é mostrado um dia “casual” na vida da palhaça, sem grandes destruições ou raios azuis apocalíticos, como é de costume em filmes do gênero. A história tem um ar de filme independente e bebe bastante de clássicos, como Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, tendo como evento mais grandioso a explosão da Ace Chemicals, que ocorre nos minutos iniciais do filme.
Mas é claro, o filme não pertence somente a Harley, ele também é a porta de entrada para a apresentação de uma gama de novas personagens que nunca tiveram a oportunidade de dar as caras no cinema. Em sua grande maioria, as adaptações são excelentes e respeitam o material original, apesar de não se limitar ao mesmo, trazendo consigo novas dinâmicas que por menores que sejam, enriquecem aquilo que já havíamos visto antes nas páginas dos quadrinhos. O único ponto fora da curva é a Cassandra Cain (Ella Jay Basco), que se torna uma personagem completamente diferente da sua contraparte das HQ’s, mas ainda assim, é cativante e movimenta a trama para frente, conectando todos os pontos, que acabam por se colidir no terceiro ato.
O roteiro é inteligente e faz com que essa união não se torne algo forçado ou superficial. Todas as personagens possuem suas histórias e dilemas, e, passam grande parte do filme não indo muito com a cara uma da outra, tendo como denominador comum a presença de Roman Sionis (Ewan McGregor) em suas vidas. O vilão é um homem narcisista e controlador que não mede esforços para ter todos em sua mão, sendo através do dinheiro ou do poder, como pode ser visto na jornada da Canário Negro (Jurnee Smollett), que acaba ficando presa na “jaula” até o momento onde ela se reconecta com a sua própria voz.
O filme mostra não só a Harley, mas outras mulheres em uma jornada de emancipação. Helena (Mary Elizabeth Winstead) está em busca de vingança pelo seu passado e acaba ganhando um novo rumo ao conhecer, Dinah e Renée Montoya (Rosie Perez), Cassandra deseja mudar de vida e encontra em Harley um modelo para seguir. Toda tem seus dilemas e buscas pessoais, o filme investe bastante na ação, mas também dá o devido tempo para conhecermos o íntimo de casa uma, sabendo dosar bem o que transpor para a tela.
Veja, elas são o primeiro grupo feminino protagonista de um filme de super-heróis. São personagens plurais e carismáticas, somando a equipe habilidades únicas que se sobressaem dependendo da ocasião. Não é comum vermos esse tipo de representação feminina em filmes de ação, em muitos casos elas acabam sendo representadas de forma unidimensional ou caindo em certos estereótipos.
O filme é produzido, dirigido, roteirizado e estrelado por mulheres, e essa soma acaba beneficiando o longa e trazendo uma gama de representatividade junto com ela. Seja através dos subtextos trazidos no roteiro a respeito de machismo e relacionamentos tóxicos, seja através do figurino, que sabe trabalhar os diversos tipos de feminilidade, tendo dos visuais mais coloridos e estilosos aos mais táticos e confortáveis, se tornando um complemento de suas personalidades e não as tornando um mero objeto sexual para a audiência, mesmo quando elas são vistas usando roupas curtas ou apertadas.
“Aves de Rapina” também possui uma grande quantidade de personagens não brancos em tela, sendo o filme de super-heróis com a maior quantidade de personagens de origem nipônica e amarela não relacionados, tanto em papéis de destaque quanto em papéis coadjuvante ou figuração. E é certo afirmar que isso está relacionado com Cathy Yan, a diretora do longa, que possui origem chinesa.
Esse diferente número de vozes femininas na produção dá um ar refrescante ao gênero de heróis que pouco tempo antes estava sendo alvo de debates sobre um possível declinío que o levaria ao desinteresse por parte do público. “Aves de Rapina” é um filme de menor escala e se beneficia disso, sabendo driblar o baixo orçamento com muita criatividade, mas sem largar a mão da qualidade. A ausência de grandes explosões ou de monstros em CGI não é sentida e o público consegue se relacionar com as personagens pela humanidade e desenvolvimento de suas histórias, mesmo daquelas que não possuem um tempo de tela muito extenso. O filme é um marco e com toda a certeza ficará na memória dos fãs por muitos anos.