Coringa | Um punchline na boca do estômago

    Comédia e tragédia. Dois gêneros irmãos, antigos como o próprio teatro ocidental em si e que, apesar de vistos como antagônicos, andam próximos, separados por uma linha tênue. Tanto a tragédia – centrada no campo do divino e do heroíco – como a comédia – que habita o mundano – buscavam a crítica social e política, um olhar sobre os costumes que, embora específico para a antiga Grécia, ainda hoje nos é muito atual.

    O trágico e o cômico são forças correlacionadas, cotidianas, que partilham de uma mesma característica essencial: a inevitabilidade. A tragédia não é simplesmente o acontecimento catastrófico, mas a inevitabilidade que o cerca. A tragédia de Édipo não é (atenção para o spoiler com mais de 2 mil anos de idade) assassinar seu pai e casar com sua mãe, mas a impossibilidade de fugir deste destino. Assim também é… a piada. Se você começa a contar uma piada, a espera pelo punchline é inevitável. A piada precisa desenvolver-se, precisa chegar ao final – mesmo que subverta sua propria necessidade de concluir-se. Uma piada, inevitavelmente, está destinada a causar impacto, a subverter.

    Não é à toa que ambos gêneros foram eternizados nas máscaras gregas que simbolizam o teatro até hoje: a máscara da Comédia, que ri, e a máscara da Tragédia, que sofre. Com o passar do tempo e com o estabelecimento do Drama como gênero a tragédia perdeu seu espaço e, também, seu lugar de contrapor a comédia – tanto que, hoje, muitos acreditam que a máscara da Tragédia é, na verdade, a do Drama. Isto se deve também a evolução das demais linguagens artísticas e do nascimento do próprio cinema, que usaram o Drama para classificar histórias que tivessem caráter “sério” e falassem á “vida real” – ao passo que, a tragédia, declinou junto com a civilização grega antiga.

    Esta dialética entre alegria e dor, riso e choro, pulsão de vida e pulsão de morte, habita nosso consciente coletivo. E ao longo da história da arte tivemos o surgimento de diversas narrativas e personagens que exploraram esta relação ambígua. Portanto, não é de surpreender que o Coringa, criado por Bob Kane e Bill Finger, tenha se tornado um dos vilões mais influentes e memoráveis da cultura pop. O palhaço cria, junto com seu eterno rival Batman, um par que já predispõe esta disputa de forças e nos convoca à refletí-las.

    Desde seu debut, em Batman #1 de 1940, o personagem ganhou diferentes leituras ao longo das décadas. A partir dos anos 80 (Na Era de Bronze ou Era Sombria dos quadrinhos, dependendo do seu ponto de vista), o personagem teve destaque ainda maior dentro do cânone do Batman – em especial, pelo trabalho de Alan Moore e Brian Bolland no clássico A Piada Mortal. O Coringa se firmava como uma figura terrível, um símbolo do caos e da violência responsável pelas maiores atrocidades vistas nas HQ’s. Sua complexidade e possibilidades como personagem tornaram o Príncipe Palhaço do Crime um objeto de estudo psicológico e filosófico interessante aos olhos dos escritores, desenhistas, roteiristas, diretores, animadores, dubladores, atores e diferentes artistas que passaram pela trajetória do personagem nas mídias do universo DC Comics.

    Em pleno ano de comemoração das 8 décadas de nascimento do Batman, o Coringa surge para roubar os holofotes mais uma vez – e com seu primeiro filme solo. Dirigido por Todd Phillips (trilogia Se Beber Não Case, Cães de Guerra), que também assume o roteiro junto com Scott Silver (O Lutador, 8 Mile), Coringa traz uma nova ótica sobre a origem do vilão. Em uma Gotham City dos anos 80, acompanhamos Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um homem com histórico de problemas familiares, financeiros e psicológicos. Enquanto tenta a sorte como comediante e humorista, Fleck mergulha em uma espiral de caos que o transformará em um ser à margem da humanidade.

    Coringa é, antes de tudo, uma obviedade. É uma revisitação ao mito do Coringa e uma modernização de sua origem. Phillips olha para a nossa contemporaniedade e busca entender como alguém poderia vir a se tornar a materialização do disfuncional, um signo do pior de nossa sociedade. Esta abordagem óbvia, porém, nunca havia sido realizada no cinema, nem mesmo nos quadrinhos, nesta intensidade. Coringa é uma perspectiva crua e horrível, que se torna ainda mais intragável pela escolha de Phillips de retratar sua narrativa da forma mais verossímil possível. O diretor aproveita do potencial da linguagem audiovisual para nos conectar diretamente com as situações, trazendo à carne e ao osso toda a violência, dor e repúdio. Sem qualquer fio de ludicidade ou fantasia, Coringa se torna um filme deliciosamente angustiante e abjeto – e assustadoramente possível em nossa realidade. Um estudo sobre um homem negligenciado e entregue à inevitabilidade trágica e cômica de um sistema que favorece o surgimento do ódio.

    A trama é inteligente e entende o peso que a figura do Coringa possui em nosso imaginário. Exatamente por isso, é cuidadosa o suficiente para não deixar que os atos do personagem sejam justificados – ou não tenham, no mínimo, um contraponto que os coloque sob reflexão. O Coringa que vemos em Coringa não é glamourizado. Não é estiloso, não tem frases de efeito, nem uma grande inteligência. É um homem doente, marginalizado, narcisista. Não há sequer uma definição exata de seus transtornos psicológicos, exatamente para evitar qualquer tipo de reconhecimento do público. O mesmo acontece com sua transformação de Arthur para Coringa. Não há um fator decisivo para sua mudança, mas sim um conjunto de agentes internos e externos agindo simultaneamente, uma reação química. Este Coringa ainda é um retrato do caótico, da subversão e da insanidade – e não é nada agradável olhar para ele.

    Phillips e Silver sobrepõem diferentes leituras que nos permitem olhar para o nascimento da violência na sociedade atual, abordando desde a esfera política á comportamental. Apesar de deixar em aberto, a dupla conduz o olhar do espectador para alguns pontos que consideram importantes com muito refinamento. O principal deles é o papel dos pais no desenvolvimento do indivíduo e o desenvolvimento disfuncional de crianças traumatizadas. Há em certo momento, por exemplo, um detalhe sutil envolvendo uma poltrona – ou, uma dad’s chair. O papel da mídia e o radicalismo político e ideológico, assim como a redução de problemas complexos a pautas simplórias e extremistas, também é trazido de forma incisiva.

    Justamente por este bombardeio de camadas, o roteiro de Coringa é complexo – mesmo sendo muito simples. A trama não é escondida do espectador, que sabe exatamente onde a história chegará – assim como uma tragédia ou uma comédia. A trajetória percorrida é inevitável – mas isso não significa que o público saberá o que assistirá. Coringa é previsivelmente imprevisível.

    Todd Phillips realiza seu melhor trabalho de direção até o momento. A condução da câmera é precisa, intercalando entre movimentações suaves e ágeis, em especial travellings (Movimentos onde a câmera se desloca no espaço. Oposto ao movimento de panorâmica, onde a câmera gira em seu próprio eixo.). Também há muito uso de câmera na mão, essencial para nos aproximar de Arthur Fleck e para reforçar a tensão de algumas cenas.

    As composições de Phillips também são muito interessantes. O diretor explora o lado esquerdo e direito de seus quadros para conduzir a percepção do espectador. O lado direito, pela presença do ponto de fuga, normalmente detém mais atenção do nosso olhar – consequentemente, tendo mais destaque e peso no quadro. Phillips, então, coloca Arthur ao lado esquerdo quando este está em conflito com alguém – reforçando o quanto é indefeso e fraco – enquanto os outros personagens ocupam a metade direita. Ao longo do filme, quando o personagem se assume como Coringa, passa a ocupar o lado direito, mostrando que o personagem alcançou certo poder – porém, sempre que procura justificar suas ações, volta ao lado esquerdo, reforçando que suas idéias e motivações são “fracas”. Phillips também aproveita do excelente design de produção de Mark Friedberg (Se a Rua Beele Falasse, Selma, Viagem a Darjeeling) para criar composições que ressaltam a grandeza e poluição visual de Gotham City e que diminuem Arthur, fazendo com que o personagem seja engolido pelo visual da cidade. Em contraponto a isto, enche a tela realizando closes desconfortáveis no rosto de Arthur, destacando o crescente de instabilidade e loucura do personagem – e o excelente trabalho de Joaquin Phoenix. Por isto, assistir Coringa em IMAX é altamente recomendado.

    Friedberg utiliza de sua experiência em construir paisagens urbanas para criar uma Gotham City muito próxima a vista nos quadrinhos e diferente de todas as versões vistas nos filmes do Homem-Morcego. A construção vai de encontro com a proposta de Todd Phillips de inspirar-se no cinema da Nova Hollywood, em especial nos trabalhos de Brian de Palma, Sidney Lumet, Stanley Kubrick, Milos Forman e, claro, Martin Scorcese – referência mais que assumida de Phillips em sua carreira. As metrópoles vistas nos filmes da Nova Hollywood possuem identidade visual própria que é perfeitamente recriada em Coringa, favorecendo diretamente na imersão do espectador. Um bom exemplo do primor da dupla é sua atenção ao recriar o chão molhado das cenas noturnas dos filmes deste período. Esta era uma saída para resolver o problema de iluminação das externas (A água ajudava a refletir a luz e deixava as cenas um pouco mais claras) e que acabou se tornando uma característica estética. Mais do que uma homenagem, é uma preocupação com o mundo ficcional do filme. Este signo – o chão molhado – chega ao público mesmo que subliminarmente, pois já estamos naturalizados até mesmo com os sentimentos que esta paisagem evoca. Isto é algo que Kubrick também percebeu enquanto filmava De Olhos Bem Fechados. Os centros urbanos da Nova Hollywood também são cercadas por uma aura de desesperança e depressão – exatamente como a Nova York que serviu de base para Bob Kane e Bill Finger nas primeiras histórias do Batman e que, mais tarde, viria a ser rebatizada de Gotham City.

    A fotografia de Coringa também cumpre bem a proposta de evocar o cinema da Nova Hollywood. Lawrence Sher (Godzilla II: Rei dos Monstros, Cães de Guerra) explora a iluminação a todo o momento, normalmente optando por deixar parte dos objetos e personagens encoberto por sombras. Isto reforça a dualidade dos personagens e traz tensão. Também utiliza muitos focos de luz vindo de cima, deixando pontos sombreados abaixo dos olhos, nariz e boca – trazendo um tom ameaçador e misterioso aos personagens. O verde e o amarelo predominam, cores que curiosamente tanto podem remeter à alegria e esperança como também à depressão e ansiedade. Estas cores dividem certo equilíbrio até metade do primeiro ato, depois começam a predominar individualmente, se intercalando. Quando o amarelo se sobressai, dá a leitura de enfermidade, de doença. Quando o verde assume, a energia é de toxicidade e poluição.

    Sher e Phillips também aproveitam da evolução do personagem para realizar uma progressão do amarelo ao vermelho-alaranjado. Ao longo do filme, veremos a introdução gradual destas cores quentes mais fortes que, boa parte das vezes, serão colocadas junto ao azul para estimular os olhos e criar conflito. Em certo ponto, os tons ficarão ainda mais vivos e fortes, representando o mundo interno de Arthur e a efervescência de Gotham. O vermelho em Coringa possui as mesmas leituras que normalmente tem na linguagem cinematográfica. Violência, sangue, perigo, paixão. Porém, Phillips usa mais uma vez sua inspiração em Scorcese para enriquecer sua condução. Em seus filmes, Scorcese possui um significado muito particular ao vermelho, remetendo-o ao inferno e à culpa católica. Aqui, em Coringa, Phillips realiza o oposto: o vermelho é a impenitência, é o desejo de realizar. Tudo que Arthur Fleck deseja tomar para si é realçado pelo vermelho-alaranjado – o amor, a fama, o palco, a verdade. E tudo que persegue, seu narcisismo destrói. Assim, o vermelho também significará a morte ao longo do filme, papel esse que normalmente é destinado à cor roxa. Por isto, faz todo o sentido que este Coringa tenha abdicado de seu terno roxo clássico para vestir o vermelho.

    Esta questão do desejo de Arthur Fleck está presente também nos figurinos de Coringa. O figurinista Mark Bridges (Trama Fantasma, Sangue Negro) reforça através das peças de roupa e cores do personagem sua vontade de pertencimento e reconhecimento, fazendo-o espelhar as roupas daqueles que despertam seu interesse. Há tambem uma composição muito interessante misturando roupas folgadas e roupas apertadas, salientando a imagem de palhaço de Arthur assim como o corpo magro de Phoenix. Bridges monta um guarda-roupa muito eficiente, que retrata muito bem a época pretendida sem perder certo caráter atemporal e que destaca os personagens secundários.

    A montagem de Jeff Groth (Cães de Guerra, Projeto X) e a trilha sonora de Hildur Guonadóttir (Sicario: Dia do Soldado, A Chegada, Chernobyl) também merece um destaque especial por conseguir acompanhar todos os movimentos do longa. É pesada, angustiante, melancólica, alegre, visceral. Há também uma grande vantagem: a trilha foi favorecida, composta usando o script e apontamentos pontuais de Phillips como base, e não apenas as cenas já gravadas. Desta forma, as cenas foram criadas já tendo sua paisagem sonora como inspiração, estando totalmente integrada na construção das sequências.

    Coringa é um filme de estudo de personagem. Por isso, o filme é de Joaquin Phoenix. O filme é Joaquin Phoenix. O ator – um dos melhores de sua geração – realiza mais um excelente trabalho de composição, possivelmente o melhor de sua carreira até hoje. É uma construção complexa, dificílima. Com muita entrega, Phoenix coloca técnica, emoção, corpo e voz a serviço de Arthur Fleck/Coringa. O ator consegue transitar por diferentes estados e até mesmo intuir diferentes transtornos mentais de forma orgânica e crível. Phoenix explora até mesmo assimetria em suas expressões faciais, o que reforça sua condição doente e causa distanciamento ao público.

    A dessintonia está presente também em seu corpo, levada ao extremo em partituras de dança belas e igualmente disformes. O corpo magro e quase esquelético – bem aproveitado pela câmera de Phillips – possui um excesso de tensão nos ombros, que destaca o pescoço e puxa a energia para o chão, nos passando esta percepção de que há algo a ser liberado. Em contraposição, os braços e pernas possuem leveza e se movem descompassados. E a risada… A risada é tenebrosa. Diferente de qualquer risada do Coringa vista até hoje. Phoenix, inspirado por pacientes diagnosticados com risada patológica, cria um símbolo sonoro para a ruptura de Fleck com o social. Por vezes deixando o som ao fundo da boca, por vezes usando de pequenoss golpes no diafragma, o ator intercala entre a artificialidade e a dor.

    O elenco de apoio também está muito bem no longa, com menção especial para Robert de Niro e Zazie Beetz. O filme, porém, não busca explorar estes outros personagens mais a fundo – o que não é ruim, na verdade, já que não é a proposta do filme. Todos realizam as funções necessárias em sua trajetória. O foco é total de Arthur Fleck, e em apenas uma cena a câmera deixa de acompanhá-lo.

    Coringa é um filme que bebe diretamente do cânone do Príncipe Palhaço do Crime, trazendo boa parte de suas construções de A Piada Mortal e Cavaleiro das Trevas, e bebendo de outros títulos, como V de Vingança. Porém, o filme não tem medo de ser uma experimentação única e inédita do personagem. A verdade é que o filme se tornaria ainda mais interessante se cortasse algumas de suas referências e elementos, que claramente foram inseridos apenas para reforçar a obra como uma adaptação de quadrinhos. Todd Phillips extrai melhor a potência de sua história com outras inspirações, voltadas a filmes como Taxi Driver, O Rei da Comédia, Batman, Batman: O Cavaleiro das Trevas, Um Dia de Cão, Laranja Mecânica, Um Estranho no Ninho, Serpico, Rede de Intrigas, Caminhos Perigosos, Tempos Modernos e Desejo de Matar. Ou mesmo no conto folclórico do Flautista de Hamelin.



    Enfim…



    Coringa é uma adaptação de quadrinhos que está em outro patamar de maturidade e de pretensão. Uma revisitação ao mito do Coringa, um olhar perturbador sobre o surgimento de um dos maiores vilões da cultura pop – até hoje, nunca explorado, mesmo após 79 anos de história do personagem.

    Inspirado fortemente pelo cinema da Nova Hollywood, Todd Phillips usa de uma excelente equipe técnica para recriar a linguagem dos filmes do período, criando uma obra imersiva e crível para chocar e horrorizar seu público. Tudo isto é potencializado por uma performance complexa e vertiginosa de Joaquin Phoenix, em uma das construções de personagem mais incríveis da década. Coringa é um retrato possível da violência presente em nossa contemporaniedade e um soco indigesto no estômago. Uma perspectiva sob as adaptações de quadrinhos, que certamente influenciará o gênero – que se encontra em certa cristalização.

    Nas primeiras páginas do crossover Batman, Coringa & O Máskara, durante um assalto a um museu, o vilão, parado em frente a máscaras parecidas com as da Tragédia e da Comédia, explica para Arlequina que as acha “forçada demais para terem graça”. É curioso pensar que, nesta história, o Coringa não se identifique com o exagero do trágico e do cômico, mas age como um ser que está entre estas forças. O “drama”, antes de ser um gênero, era usado para designar a situação, o acontecimento – presente tanto na Comédia como na Tragédia. Tanto que sua tradução literal é “ação”. Neste longa, Phillips e Phoenix nos levam a ver o Coringa justamente desta forma: pura e concreta ação, vivendo entre a tragédia e comédia. O Coringa somente age, levado por uma tormenta de caos interno e externo, destinado a se tornar vítima e algoz do próprio destino.

    Coringa é um vislumbre sobre a violência de nossa sociedade e sobre a iminência do surgimento do mal. Um presente trágico, cômico, doente – e, inevitável.

    Nota:

    Rodolfo Chagas
    Rodolfo Chagashttps://terraverso.com.br
    Sou daqueles que saía correndo na saída da escola pra almoçar assistindo Liga da Justiça. Daqueles que juntava o troco do pão pra comprar gibi no sebo. Feliz de viver na melhor época pra ser nerd. Sem editorismo, amai-vos uns aos outros! A alvorada dos heróis ainda vai durar por muitos anos! Que Snydeus seja louvado e que Stan Lee viva pra sempre!

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